MÍDIA & TRANSGÊNICOS
O princípio da precaução e a cidadaniaMaria Alice Garcia (*)
Se as campanhas antitransgênicos, iniciadas por ONGs, são acusadas de superficiais e ideológicas, críticas ainda mais severas devem ser feitas em relação às campanhas pró-transgênicos, porque se pretendem científicas, quando ignoram a própria ignorância.
No debate sobre transgênicos, os discursos favoráveis não constituem diálogos, mas monólogos que não têm auxiliado no esclarecimento da população e nem permitem questionamentos. Dados caricaturais de ciência e de economia são apresentados como verdades que garantem a inexistência ou justificam os riscos. Quem questiona a biossegurança dos transgênicos é considerado portador de preconceitos ideológicos e desqualificado como ignorante. Portanto, não merece crédito. A agressividade com que esse argumento tem sido usado, inclusive por acadêmicos, é tamanha que poucas são as vozes que ousam quebrar o silêncio e vencer a intimidação que se associou à campanha de marketing dos transgênicos no Brasil.
É preocupante observar a tendência de políticos e até de cientistas que, em função dos limites de sua área de atuação, e de uma visão ultrapassada do que seja progresso, tendem a justificar a liberação de todo e qualquer produto da biotecnologia, sem a devida análise dos seus possíveis impactos sobre a saúde e o meio ambiente. Parece que nada lhes ficou na cabeça das discussões que, na Rio-92, afirmaram a consciência de uma nova era. A era da busca da sustentabilidade e do desenvolvimento responsável, voltado para a qualidade de vida humana e do meio ambiente. Nesse contexto, a mídia pouco ou nada tem contribuído para recuperar esses valores.
Tudo indica que os 11 anos que se passaram desde a Rio-92 pouco contribuíram para a implementação de novos modelos de desenvolvimento, voltados para a sustentabilidade e a responsabilidade com as próximas gerações. Daí o espaço para a agressividade do marketing dos transgênicos que, frente à ausência de informação sobre biossegurança, simplesmente desqualifica os questionamentos sobre o assunto como frutos da aversão ao avanço científico e tecnológico. Acontece que nem os políticos, nem os pesquisadores da área de biotecnologia, nem os que elaboram a propaganda dos transgênicos estão qualificados para falar ou especular sobre biossegurança, pois não estudam as interações de organismos, destes com o ambiente, suas relações diretas e indiretas com o homem e a evolução de organismos.
Os fantásticos frutos da engenhosidade humana, criados a partir de novas combinações de genes, podem trazer grandes benefícios à humanidade, mas não podem ser, a priori, admirados como divinos e maravilhosos. Além da necessidade de estudos de longo prazo dos efeitos sobre a saúde, vale lembrar que todos os produtos dessa tecnologia representam elementos novos para a natureza, cuja ecologia e evolução de organismo e de interações com outros organismos, inclusive o homem e interações nos ecossistemas, são desconhecidas.
O perigo do milho
Estudos de ecologia de invasão, fluxo gênico, ecologia de populações e modelos de epidemiologia muito nos teriam a ensinar sobre alguns riscos potenciais desses organismos. As experiências de inserção programada ou acidental de espécies não-transgênicas em novos ambientes já têm sido desastrosas o suficiente. Essas experiências existem no mundo todo e deveriam nos alertar a respeito dos riscos potenciais de desequilíbrios populacionais de animais e plantas e de funcionamento dos ecossistemas devido à inserção ou à criação por hibridização de genótipos novos, com alguma vantagem adaptativa. No caso de espécies transgênicas para a agricultura, essas poderão vir a cobrir extensões imensas e, se algo der errado, o impacto pode ser de escala planetária. Mas vale lembrar que esses impactos podem ser ainda maiores em ecossistemas tropicais e subtropicais, em que processos de interação biótica difusos e complexos tendem a ser muito mais relevantes para dinâmicas populacionais do que as respostas ao ambiente físico.
Dessa forma, não se pode falar genericamente de transgênicos. Enquanto a insulina transgênica é produzida por bactérias transgênicas mantidas em sistemas fechados de contenção rigidamente controlados e monitorados, sem contato com o ambiente externo, a soja transgênica resistente a herbicida ou a insetos, ou cultivos de milho transgênico produtor de hormônio do crescimento humano, outros fármacos ou enzimas para a indústria, são ou serão produzidos como monoculturas, em larga escala, em contato com o ambiente físico e biológico externo, com os quais vão interagir. Mas todos são misturados e apresentados como se fossem equivalentes em termos de riscos e benefícios reais ou potenciais para o ser humano e meio ambiente, independentemente do contexto ou das condições em que são produzidos.
Especialmente preocupante é a produção de fármacos em plantas que serão cultivadas em larga escala como biofábricas. A possibilidade de contaminação da cadeia alimentar humana e de animais silvestres com hormônios e outros produtos de biofábricas é muito grande, uma vez que a principal espécie que vem sendo modificada para essa finalidade é o milho, base de muitos de nossos alimentos.
Exemplo de gestão
E como fica o cidadão comum nessa história? Questionar e querer informar-se sobre a segurança do uso de transgênicos para o ambiente e para o homem é o que se espera de qualquer cidadão consciente na atualidade. Que seja capaz de relacionar minimamente a história de tecnologias e práticas como o uso de agrotóxicos na agricultura, da radioatividade e da energia atômica, com impactos no ambiente e sobre a saúde humana. Isso não significa negar os benefícios que essas mesmas tecnologias trouxeram e ainda poderão trazer à humanidade, mas colocar-se à frente delas, como Ser capaz de aprender com erros do passado, e de exercer seu papel de cidadão pensante, que exige projetos de desenvolvimento coerentes com a noção de sustentabilidade e de qualidade de vida para essa e as futuras gerações. Que não aceita o papel de vitima ou de consumidor passivo, convencido por propaganda.
Apresentar produtos, como a insulina transgênica, como equivalente aos cultivos transgênicos, quanto a riscos e benefícios para o ambiente e para a saúde humana, é fazer uso de uma caricatura de propaganda ainda mais perniciosa do que a dos frankfood. Pois, enquanto esta ultima é claramente uma caricatura, a primeira se pretende científica.
É hora de admitir a ignorância para construir o conhecimento verdadeiro, informar e impedir que o cidadão venha a sucumbir à propaganda.
Assim, se o Brasil considerar o valor de seus recursos naturais, da sua biodiversidade e da saúde de seus cidadãos, e adotar a necessidade de estudos sobre biossegurança e o princípio da precaução para balizar decisões sobre liberação de cultivos transgênicos no ambiente e para a produção comercial, poderá não apenas garantir a segurança alimentar de sua população no futuro, mas também dar um exemplo de gestão democrática, de contemporaneidade e de respeito a seus cidadãos, que vem sendo cobrada das nações nas últimas décadas, para viabilizar o desenvolvimento sustentável.
(*) Professora-associada do Departamento de Zoologia da Unicamp
fonte: Observatorio da Iimprensa.com.br de 13/12/03
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