Matéria do Correio Braziliense em 03/08/98
No Brasil, agricultores já plantam a soja transgênica e, segundo a empresa que desenvolveu a semente, gostaram dos rendimentos das lavouras. Um denominação complicada está mais próxima da mesa do brasileiro do que o consumidor poderia imaginar: o ''organismo geneticamente modificado''. Mais exatamente, a soja transgênica, que está prestes a invadir as prateleiras dos supermercados do país. Não se espante se você não faz a mínima idéia do que isso significa. Ninguém faz, além dos especialistas que tratam do assunto e dos técnicos das empresas envolvidas no negócio.
Nesse jogo está um mercado internacional que movimenta bilhões de dslares por ano, mas saiba que isso pode afetar a sua saúde. Além da margarina e do óleo, a soja está presente em cerca de 60% dos alimentos vendidos nos supermercados. Entra na formulação de pães, bolos, bolachas, massas, sorvetes, chocolates e até alimentos infantis, entre outros. Muitos desses produtos já podem conter a soja modificada geneticamente, caso tenham sido importados, porque em vários países não é obrigatória a discriminação no rótulo.
Esse tipo de soja tem resistência a agrotóxicos venenos contra plantas ou insetos (herbicidas e inseticidas). Os agrotóxicos podem fazer mal à saúde humana. A multinacional Monsanto uma gigante da indústria química que está entre as cem empresas mais lucrativas dos Estados Unidos, segundo a revista Forbes pediu ao governo brasileiro autorização para produzir e comercializar no país uma semente de soja transgênica que desenvolveu. A decisão deve ser tomada entre os dias 13 e 15 de agosto, quando se reúne a Comissão teinica Nacional de Bioseguranga (CTNBio), o srção governamental que autoriza ou não o uso no país de qualquer organismo geneticamente modificado. Segundo a Monsanto, a planta é resistente ao herbicida Roundup, também fabricado pela multinacional. A vantagem é que o veneno pode ser aplicado na lavoura sem prejudicar a planta de soja, garantindo mais rendimento.
A soja transgênica foi obtida, segundo o diretor de Assuntos Corporativos da Monsanto no Brasil, Rodrigo Almeida, a partir da inserção de um gene resistente ao veneno na planta de soja. O gene foi extraído, segundo Almeida, de uma bactéria encontrada no solo (Agrobacterium spp). Para pedir a aprovação do produto na CTNBio, a empresa montou um calhamaço de 345 paginas, com explicações técnicas e estudos sobre a eficácia do produto em testes de campo: ensaios para provar que a planta agüenta de verdade as pulverizações com o veneno, sobrevivendo às aplicações, enquanto todas as plantas ''invasoras'' morrem.
Não ha, porém, nenhum estudo comprovando que a presença deste gene não afetara a saúde humana ou dos animais que venham a se alimentar da soja transgênica. Muitos dos genes que a indústria da agroquímica vem testando ão fazem parte da dieta normal da população.
Tampouco há estudos de impacto ambiental ou sobre a saúde do homem em relação ao previsível aumento do uso do herbicida Roundup. Igualmente, não há estudos sobre os desdobramentos econômicos disso. No Brasil, como em outros países, a Monsanto vem comprando empresas fornecedoras de semente, e a tendência é a de que a multinacional domine o mercado. Só nos Estados Unidos a Monsanto investiu US$ 6,7 bilhões nos últimos dois anos para comprar empresas produtoras de sementes, entre as quais a segunda maior companhia do setor no país, a Dekalb Genetics Corp.
No Brasil, a Monsanto comprou a empresa Paraná Sementes, a Agroceres e formou uma joint venture com a Cargill, todas produtoras de sementes. A semente é a ponte entre as empresas de biotecnologia e o agricultor – o meio por onde é repassada a tecnologia desenvolvida em laboratórios.
Todas as informações com as quais a CTNBio conta para autorizar o uso da soja transgênica no Brasil foram prestadas pela própria Monsanto. Segundo o presidente da comissão, Luiz Antônio Barreto de Castro, ''a empresa é que deve arcar com o ônus da prova de que seu produto é seguro''. A Monsanto tem, porém, pelo menos um aliado no país, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuaria (Embrapa).
O presidente da estatal, Alberto Duque Portugal, enviou carta a Barreto apoiando o pedido da Monsanto. A multinacional tem contrato com a Embrapa para a inserção do gene resistente ao veneno nas variedades de soja desenvolvidas pela estatal. Mesmo sem nenhum estudo sobre o assunto no país, Portugal descarta a possibilidade de que a soja transgênica venha a prejudicar a saúde do consumidor. ''Isso não tem nenhum fundamento'', garante.
CAUTELA Na semana passada, a CTNBio recebeu pedido de diversas entidades para negar o pedido. Entre as entidades, estão o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), o Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Agricultura e Saúde (Gipas) e a Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa.
Na Europa, o uso da soja transgênica está proibido em varios países, caso da Áustria e de Luxemburgo. Em outros países, como Dinamarca e Suíça, todo o alimento que contém produtos modificados geneticamente deve trazer esta informação no rótulo. Além disso, há redes de supermercados que se negam a comercializar produtos que têm, na sua formulação, organismos transgênicos. O motivo das restrições é sempre o mesmo: não se sabe ao certo se esse tipo de alimento é mesmo seguro nem se pode afirmar com certeza que não provocará dano à saúde.
Pesquisa de opinião feita pela empresa Mori (Market and Opinion Research International) no ano passado mostrou que a maioria dos europeus torce o nariz para os alimentos modificados geneticamente. Na Suécia, 78% da população não se sente feliz com a possibilidade de comê-los. Na França, 77% dos entrevistados têm esta opinião. Na Itália e na Holanda, 65%.
JUSTIÇA Para pedir a autorização de uso da soja modificada no Brasil, a Monsanto não entrevistou consumidores, mas mediu a opinião de agricultores. E a grande maioria dos produtores ouvidos, segundo a empresa, pretende usar as
sementes de soja modificadas geneticamente em razão da suposta economia pela substituição de vários herbicidas por apenas um: o Roundup, da Monsanto.
Na semana passada, a indústria ligada à biotecnologia sofreu um primeiro revis no Brasil. A 6ª Vara de Justiça Federal deu ganho de causa à organização ambientalista Greenpeace obrigando a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) a identificar no rótulo os óleos obtidos a partir de soja transgênica importada. A Abiove obteve autorização para importar 1,5 milhão de toneladas de soja dos Estados Unidos no ano passado. Desse total, cerca de 15% é de produto modificado geneticamente. A soja foi usada para fabricar óleo.
A soja transgênica é apenas o primeiro de uma séria de alimentos geneticamente modificados que podem invadir a mesa do consumidor. Só no ano passado, a CTNBio autorizou a importação para testes ou uso experimental em
campo de 29 produtos transgênicos. Entre os quais, além da soja resistente a herbicidas, milho resistente a insetos e a venenos e cana-de-açúcar que sobrevive a agrotóxicos.
Preço no mercado externo pode cair
Se há algum tipo de soja que pode sofrer restrições e quedas de preço no mercado internacional é a soja transgênica. A soja tradicional (não transgênica) tem mercado consolidado. Embora use agrotóxicos e fertilizantes químicos, sua importação não está proibida em nenhum país – o que ocorre com o produto alterado geneticamente. Até agora, segundo informações da Monsanto e de agricultores que usam o produto, os dois tipos
de soja têm obtido praticamente o mesmo preço: R$ 196 a tonelada.
Esse é o preço conseguido, por exemplo, pelo produtor argentino Alejandro Delfino, da província de Santa Fé, 350 km ao norte de Buenos Aires. Ele cultiva cerca de 2.500 hectares de soja. Metade disso com semente transgênica. ''Os resultados de produtividade são semelhantes e o preço obtido é exatamente o mesmo, com a vantagem de que os custos são menores na lavoura de soja modificada geneticamente'', diz.
A economia se dá, segundo ele, porque em vez de usar vários herbicidas para matar diferentes tipos de vegetação, a soja transgênica exige a aplicação de apenas um, o Roundup, mais barato, fabricado pela mesma empresa que fornece as sementes modificadas geneticamente, a Monsanto.
Embora o preço seja o mesmo, segundo Delfino, alguns compradores já exigem que o óleo obtido com a soja transgênica tenha discriminação no rótulo. Em geral, esse produto não é separado do comum na Argentina . ''Se isso tiver que ser feito, haverá um custo maior, que será repassado ao comprador'', afirma Delfino.
TENDÊNCIA A tendência, segundo ecologistas, é que as barreiras levantadas contra a soja transgênica acabem derrubando o preço do produto no mercado internacional. A opinião é compartilhada pelo engenheiro agrônomo e ecologista Sebastião Pinheiro, do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Agricultura e Saúde (Gipas).
Pinheiro coordena um trabalho de produção de sementes orgânicas – sem o uso de insumos químicos – em assentamentos da reforma agrária no Rio Grande do Sul. Esse tipo de soja vem obtendo preços cada vez melhores no mercado internacional. Produtores do Paraná têm conseguido até R$ 300 por tonelada do produto em operações com países europeus.
A empresa Terra Preservada trabalha em sistema de integração com agricultores de soja orgânica naquele estado. A perspectiva é de exportação de quatro mil toneladas do produto para a Europa nesta safra. ''A demanda por soja orgânica no mercado internacional é maior que a oferta'', garante o gerente da empresa, Rogério Konzen.
Para ter aceitação no mercado, a soja orgânica precisa passar pela fiscalização de empresas que certificam que o produto está isento de insumos químicos. Segundo Konzen, em varios países europeus ha pressões para diferenciar a soja transgênica da não transgênica, com diferença de preços. ''A tendência é a de que a soja convencional obtenha melhores preços'', avalia Konzen. (WBF)
Vantagens duvidosas
A soja resistente a herbicida é como um dente resistente à dor. Não resolve o problema, mas convive com ele. Nesse caso, o problema é o modelo de agricultura imposta hoje pela indústria química, com o uso de agrotóxicos produtos prejudiciais à saúde humana e ao meio ambiente – e de todo o chamado ''pacote tecnolsgico'', que inclui sementes desenvolvidas pela mesma indústria química, dependentes de seus outros produtos, como os fertilizantes químicos.
A soja que a Monsanto pretende colocar no mercado brasileiro não rende mais óleo, não tem mais proteínas nem é mais fácil de ser industrializada. Tampouco consegue uma produtividade suficiente para abolir o uso de fertilizantes químicos ou venenos nas lavouras.
A única diferença é que resiste ao herbicida fabricado pela mesma Monsanto, o Roundup. É como se alguém inventasse um super analgésico para curar a dor que ele mesmo provocou. O que a empresa propõe é uma agricultura de dependência tecnológica de futuro duvidoso.
O Brasil é hoje o segundo maior produtor de soja do mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos. Os dois países, junto com a Argentina, detêm 90% da produção mundial. Dos três, o Brasil é o único país que ainda não adotou a soja que resiste ao Roundup. Para a Monsanto, é fundamental conquistar esse mercado.
Mas, para o País e para o consumidor brasileiro, que estaria exposto a um alimento cujas implicações à saúde são desconhecidas, as vantagens não são assim tão evidentes. (WBF)
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