A introdução em larga escala nos ecossistemas de plantas com gens de outras plantas, de bactérias ou mesmo de animais implica em processos adaptativos de curto e médio prazo que normalmente a natureza poderia levar muitos milhares de anos para realizar através das mutações naturais
Marcelo Firpo de Souza Porto é pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/Fundação Oswaldo Cruz ([email protected]). Artigo enviado pelo autor ao 'JC e-mail':
As discussões sobre transgênicos no Brasil não têm
colocado suficientemente o tema das incertezas da ciência frente aos
riscos complexos, que é central para entendermos o problema.
Sem esse balizamento as argumentações caem rapidamente num terreno
dogmático e maniqueísta, dificultando tanto o diálogo
quanto decisões justas e equilibradas.
Tanto no Brasil quanto em outros países as polêmicas têm
sido marcada por embates e dificuldades de comunicação entre
cientistas, ecologistas, instituições e políticos.
Usando clichês presentes no debate atual, de um lado encontram-se os
'obscurantistas' e 'ambientalistas românticos' que rejeitam a ciência
e o progresso.
De outro lado, os cientistas, técnicos e produtores 'vendidos ao grande
capital' das empresas transnacionais, que só querem os lucros de curto
prazo, ignorando perigos e externalizando os custos para a saúde e
o meio ambiente.
Cada lado se intitula representante da 'verdade' que enfrenta a ignorância
ou a maldade do outro lado. Via de regra, observamos um enorme distanciamento
entre os discursos dos cientistas e o debate mais amplo na sociedade.
A complexidade do problema e as dificuldades de comunicação
dos especialistas e instituições com o público em geral
ajudam-nos a entender o porquê de muitas pessoas que assistem aos debates
sobre transgênicos saírem ainda mais confusas do que antes.
E com a confusão e a falta de comunicação ganham os que
conseguem influenciar as decisões de forma mais competente. Ou seja,
os mais poderosos e articulados, ainda que representem apenas interesses particulares
ou ilegítimos.
Para que os debates se tornem mais frutíferos, as argumentações
sobre os impactos das novas tecnologias sobre a saúde e o meio ambiente
deveriam explicitar o mais claramente possível o que se sabe do que
não se sabe, ou seja, as incertezas em jogo.
De acordo com diversos autores que atuam nas chamadas ciências do risco,
podemos classificar as incertezas em três tipos: risco, indeterminância
e ignorância. (Nota 1)
(i) Risco é adotado quando podemos modelar bem o problema, definindo
com acurácia conseqüências, probabilidades e cenários
futuros. Ou seja, pelo menos teoricamente sabemos tanto prever como controlar
os riscos, embora na prática isso possa não ocorrer. Em situações
reais, nem sempre os cálculos dos riscos são realizados ou as
medidas preventivas mais eficientes são implementadas. Isso pode acontecer
em regiões onde as infra-estruturas técnico-científicas
e econômicas sejam inadequadas, ou não haja suficiente interesse
e força política para proteger os grupos populacionais vulneráveis
mais afetados pelos riscos.
(ii) Já a indeterminância se aplica quando conhecemos o problema,
temos modelos bem estruturados mas não se pode predizer sem grandes
margens de erros como o sistema analisado se comportará no futuro.
O problema da incerteza aqui decorre não da falta de modelos nem de
infra-estrutura, mas sim da existência de fenômenos com múltiplos
elementos, processos não-lineares e feedbacks operando em distintas
escalas espaciais e temporais que dificultam previsões precisas. Um
exemplo clássico é o da previsão do tempo numa cidade
ou região dentro de algumas semanas. Ao lidarmos com problemas assim,
devemos nos preparar para enfrentar os cenários possíveis mais
relevantes e graves, dado que não é possível saber com
precisão a probabilidade de ocorrência de nenhum deles. Um exemplo
é a preparação de planos de emergência em áreas
onde teoricamente podem ocorrer furacões, terremotos ou enchentes.
(iii) Finalmente a ignorância ocorre em situações tão
complexas que a ciência sequer possui modelos adequados para predizer
e atribuir os cenários futuros mais relevantes. Isso ocorre com problemas
envolvendo sistemas complexos abertos ou adaptativos, caso tanto da complexidade
ordinária dos ecossistemas quanto da complexidade emergente ou reflexiva
dos seres humanos. Na complexidade ordinária que caracteriza os sistemas
biológicos não humanos há uma ausência da autoconsciência
e de propósitos mais completos por parte dos seres vivos, com um padrão
de organização mais voltado à complementaridade de competências
e de cooperação, como a predação, o parasitismo
e a simbiose. Já a complexidade emergente ou reflexiva dos sistemas
sociais, técnicos ou mistos que incluem os seres humanos, possui características
como intencionalidade, consciência, representações simbólicas
e moralidade. (Nota 2)
Para os sistemas complexos ordinários ou reflexivos, modelos de comportamento
baseados em análises parciais do passado não podem fornecer
qualidades relevantes suficientes para prever cenários futuros.
Portanto, para tais sistemas podemos falar de uma ignorância epistemológica
que transforma a previsão em mero exercício de futurologia.
Para exemplificar, jamais poderemos prever com precisão como será
o futuro de um recém-nascido, ou em escalas temporais bem maiores como
será um ecossistema dentro de milhares de anos. Um aspecto nebuloso
desse tipo de incerteza é que as novidades - e conseqüentemente
também as tragédias - são apreendidas com a experiência.
Pode-se argumentar que boa parte do progresso científico e tecnológico
sempre ocorreu dessa forma: novas tecnologias podem provocar tragédias
não previstas, cujos perigos foram desprezados ou então a ignorância
assumia um papel central.
Com o progresso técnico-científico melhoram-se os modelos de
análise, reduz-se o grau de ignorância e novas medidas preventivas
são introduzidas.
Diversos pioneiros da química e da física nuclear morreram por
doenças ocupacionais cujos mecanismos operativos só foram descobertos
anos mais tarde.
Se é assim, por que o princípio da precaução deveria
ser adotado para o caso dos transgênicos? A resposta está no
reconhecimento de que uma ignorância epistemológica se encontra
no coração do problema.
Simplesmente não há modelo científico capaz de prever
os efeitos de médio e longo prazo para a saúde dos ecossistemas
e, conseqüentemente, para a saúde humana.
A introdução em larga escala nos ecossistemas de plantas com
gens de outras plantas, de bactérias ou mesmo de animais implica em
processos adaptativos de curto e médio prazo que normalmente a natureza
poderia levar muitos milhares de anos para realizar através das mutações
naturais.
E não existem modelos teóricos ou experimentos controláveis
que possam reproduzir como se dará a evolução dos ecossistemas
diante de tais novidades, em especial no tocante aos 'efeitos colaterais'
para a saúde dos ecossistemas.
A realização de experimentos controlados de liberação
planejada no meio ambiente reduzem mas não eliminam o elevado grau
de incertezas dos transgênicos.
Diversas conseqüências do 'lançamento' das novas cargas
genéticas no ambiente somente serão reconhecidas após
a liberação comercial em larga escala.
E aí já será tarde demais para revertermos os eventuais
prejuízos: diferente de outras formas, a 'poluição' genética
originada nas plantas e microorganismos geneticamente modificados incorpora-se
aos ciclos reprodutivos e não poderá mais ser retirada dos ecossistemas.
É necessário também diferenciar os transgênicos
de outros avanços da tecnologia genética, como a produção
de insulina humana usada há anos pelos diabéticos.
Aqui não há introdução de novas cargas genéticas
na natureza e, portanto, os riscos são circunscritos e o grau de incertezas
é reduzido.
Bom, se essa argumentação é correta, como explicar a
posição favorável de muitos cientistas aos transgênicos,
com alguns chegando a negar a existência de perigos?
Uma primeira explicação está relacionada ao próprio
modelo hegemônico de ciência normal. Este termo foi cunhado por
Thomas Kuhn, um dos pais da moderna História e Filosofia da Ciência,
para explicar como a ciência se desenvolve.
Para Kuhn, isso se dá através da construção de
paradigmas por disciplinas especializadas que reafirmam mais suas 'certezas'
internas e ignoram a complexidade dos problemas que ultrapassam as suas fronteiras.
Esse modelo de ciência possui dificuldades para analisar e enfrentar
problemas complexos, o que explica em parte a razão de muitos cientistas
dizerem que não há 'riscos'.
Num certo sentido realmente não há riscos, o que há é
a ignorância da ignorância. No fundo, os transgênicos trazem
à tona o projeto de ciência moderna em sua relação
com a natureza e com os próprios seres humanos: dominação
ou convívio? Essa questão é central para a sustentabilidade
e exige a construção de um novo modelo de ciência.
Para autores que discutem uma nova ciência da sustentabilidade, a superação
dos limites intrínsecos da ciência normal passaria pela construção
de uma ciência pós-normal, com enfoque transdisciplinar em torno
de objetos-problemas relevantes, pautada no reconhecimento da complexidade
e das incertezas. (Notas 3, 4)
Como a ciência não possui respostas claras para problemas complexos
como os transgênicos, torna-se também necessário intensificar
a busca ativa de diálogo entre a ciência e outras formas de conhecimento,
já que vários atores com interesses legítimos têm
algo a dizer sobre o problema.
Sem tais pressupostos, as contribuições e a legitimidade da
própria ciência para os processos decisórios tendem a
cair no descrédito.
Aliás, este problema não é novo e apenas se agrava com
os transgênicos. De acordo com a metáfora do francês Bruno
Latour, o lugar da ciência moderna pode ser imaginado através
dos trabalhos do sanitarista Pasteur, com a conquista e domesticação
de uma natureza ameaçadora pelo mundo do laboratório científico.
Mas a crise ecológica contemporânea vem fazendo com que haja
uma inversão: é a natureza agora que 'invade' o mundo do laboratório,
com riscos globais em alcance e complexos em sua estrutura, escancarando aos
olhos da opinião pública os limites da ciência em compreender
e controlar os perigos das tecnologias modernas.
A ironia é constatar que, enquanto os críticos dos transgênicos
são acusados de dogmáticos e fundamentalistas, a afirmação
de que não existem riscos é basicamente um ato de fé.
Ou então de interesse: nunca houve tanto dinheiro investido em biotecnologia.
São bilhões de dólares, provenientes em grande parte
das transnacionais produtoras de agrotóxicos que apostam alto na conversão
tecnológica via transgênicos.
E isso complica a discussão mais ampla no país sobre a biotecnologia
e os benefícios da engenharia genética, pois questões
científicas, éticas, ecológicas e de saúde mesclam-se
com as de natureza mais política e econômica.
No caso da soja resistente ao agrotóxico glifosato, além das
incertezas quanto aos efeitos para a saúde humana e dos ecossistemas,
uma questão central é saber quem serão os ganhadores
e os perdedores dessa introdução.
O debate público deveria girar em torno de um amplo balanço
social e ecológico que valha para toda a nação, e não
para alguns.
Como ainda é costume em nosso país, freqüentemente as decisões
acabam sendo tomadas de forma intempestiva ou parcial. Por exemplo, pressionadas
pelo fato consumado do contrabando ilegal de grãos no RS ou pelo poderio
econômico e político daqueles que conseguem influenciar as esferas
mais elevadas de decisão.
Só o futuro dirá quantas tragédias ainda viveremos até
que aprendamos a reconhecer e lidar com nossas ignorâncias. E no caso
dos transgênicos, isso vale especialmente para a ciência e os
cientistas.
A própria genética já nos ensinou no passado o perigo
da ciência envolver-se em aventuras que embaralham fatos científicos
e ideologias na defesa de um progresso cujas 'verdades' não explicitam
com clareza as incertezas e os interesses em jogo.
Entre as décadas de 10 e 30 do século XX, muitos cientistas
célebres do mundo inteiro ficaram entusiasmados com as descobertas
da nova ciência da genética e embarcaram na onda da eugenia.
Sua proposta buscava produzir uma seleção nas coletividades
humanas baseada em leis genéticas. O fim do nazismo sepultou a proposta
da eugenia revelando como a junção da ciência com uma
ideologia perversa pode provocar aberrações para o desenvolvimento
da humanidade.
Nesse início de século XXI, a genética volta à
baila através das novas promessas da moderna biotecnologia. No caso
dos transgênicos o objeto de atuação não é
o ser humano diretamente, mas a natureza como um todo através da reprodução
de alimentos geneticamente modificados.
Um trabalho fundamental para decidirmos serenamente para onde caminhar seria
avaliar as intenções, idéias e crenças daqueles
que se encontram na linha de frente da defesa dos transgênicos.
Se suas convicções forem realmente abrangentes e representativas
dos interesses de uma ampla gama dos seres humanos, nesse caso os transgênicos
talvez possam vir a representar uma fonte para o progresso humano.
Já que a ciência não poderá dar uma resposta precisa
para o problema, que as intenções e preocupações
de todos sejam debatidas e levadas em consideração, se é
que a preocupação é com a democracia e o bem comum.
Conseqüentemente o debate aberto e o estabelecimento de compromissos
legítimos deveriam ser a base das decisões.
Não se trata de ser contra a ciência e o progresso, mas que estes
estejam a serviço da justiça e de um futuro sustentável.
A ciência continuará sendo importante para estruturar problemas
complexos como os transgênicos, mas como não há nenhuma
solução científica possível nem neutra, decisões
sábias e justas deveriam atender ao maior conjunto de interesses coletivos,
tanto das gerações atuais quanto das futuras.
Certamente ainda precisamos trabalhar muito para construirmos uma sociedade
sustentável em termos não apenas econômicos, mas sociais
e ecológicos.
Para isso é preciso explicitar e equacionar democraticamente intenções, interesses legítimos e incertezas em jogo. O papel de uma nova ciência da sustentabilidade deveria ser colaborar com este processo, e não solicitar à sociedade 'salvo conduto' amplo para levar a cabo seus novos projetos biotecnológicos. Como os próprios cientistas reconhecem, o espaço da fé é outro.
Notas:
1 - Giampietro, M., 2002. The precautionary principle and ecological hazards of genetically modified organisms. Ambio. 31(6):466-70.
2 - Funtowicz e De Marchi, 2000. Ciencia Posnormal, Complejidad Reflexiva y Sustentabilidad. In: Leff, E. (ed), La Complejidad Ambiental, Siglo XXI, Mexico, 54-84.
3 - Funtowicz e Ravetz, 1994. 'Emerging complex systems', Futures, 26 (6): 568-582.
4 - Funtowicz e Ravetz, 1997. Ciência pós-normal e comunidades ampliadas de pares face aos desafios ambientais. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, vol. IV(2), pp. 219-30.
fonte: JC e-mail 2439, de 07 de Janeiro de 2004.
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