Andrea Lazzarini Salazar*
O Brasil é signatário do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, um relevante acordo internacional firmado no âmbito da Convenção de Diversidade Biológica, com a finalidade de proteger a diversidade biológica, considerando também a saúde humana, frente aos riscos dos OGM —organismos geneticamente modificados, conhecidos simplesmente como transgênicos.
Com enfoque nos movimentos transfronteiriços de OGM, o acordo busca garantir um nível adequado de proteção no campo da transferência, da manipulação e do uso seguros dos transgênicos que possam ter efeitos adversos na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica, levando em conta também os riscos para a saúde. Para tanto, os países membros têm se debruçado sobre os variados aspectos abordados pelo protocolo ao longo dos últimos anos.
Na última semana, aconteceu em Bonn, Alemanha, o Quarto Encontro das Partes (MOP-4, na sigla em inglês) que teve como tema central a definição do regime de responsabilidade em caso de danos decorrentes de transgênicos. O Idec, em conjunto com outras organizações não-governamentais que acompanham o assunto, se posicionou pela adoção do regime de responsabilidade objetiva, vinculante e que englobe todos os danos relacionados ao uso, manipulação e transporte de OGM.
Após intensos debates e negociações entre as delegações oficiais, as partes alcançaram entendimento quanto à necessidade de um regime vinculante, em oposição ao regime voluntário defendido por alguns países. Mas, lamentavelmente, nada se avançou além disso, tendo agindo o Brasil como um dos principais articuladores do adiamento da decisão. Assim, qualquer definição sobre responsabilidade por danos decorrentes de OGM nos movimentos transfronteiriços está postergada até 2010, onde o tema será pauta do novo Encontro das Partes, no Japão.
Na opinião do Idec, é vergonhoso que o Brasil tenha buscado obstruir as definições sobre responsabilidade na esfera do Protocolo de Cartagena, tendo em vista que, internamente, o regime de responsabilidade estrita ou objetiva é o que impera em todos os aspectos atinentes à biossegurança, conforme definido na Lei de Biossegurança, na legislação ambiental e no Código de Defesa do Consumidor. É ainda o regime que disciplina a conduta do Poder Público, conforme previsto em nossa Carta Magna.
Portanto, em matéria de transgênicos, os danos causados à saúde dos consumidores, ao meio ambiente, à agricultura convencional e/ou orgânica, ou a qualquer outro bem juridicamente protegido, deverão ser reparados independentemente da existência de culpa, podendo recair o dever sobre todos aqueles que deram causa ao dano.
É indiscutível que o detentor da tecnologia, aquele que patenteou o evento transgênico, deve ser responsabilizado sempre que sua “invenção” der causa ao dano. Trata-se do risco da atividade e sobre isto não há dúvida. Por outro lado, também pode ser responsabilizado o Poder Público por ter autorizado o plantio e a comercialização da espécie transgênica.
Além de conflitante com a legislação interna, a posição defendida pelo nosso país no âmbito do Protocolo de Cartagena na MOP-4, testemunhada pelo Idec e outras organizações não governamentais presentes, é mais uma demonstração do descaso para com a saúde dos consumidores e o meio ambiente.
Infelizmente, essa conduta se coaduna com tantas outras adotadas pelo governo federal nos últimos anos no sentido de não adotar medidas específicas com vistas a implementar o protocolo, fato que resultou em uma denúncia inédita apresentada pelo Idec, Terra de Direitos, Aspta (Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa), Greenpeace, AAO (Associação de Agricultura Orgânica) e Anpa (Associação Nacional dos Pequenos Agricultores) ao Comitê de Cumprimento do Protocolo de Cartagena durante o Encontro Internacional.
No documento apresentado na sessão plenária da MOP 4 e encaminhado formalmente à sede da Convenção de Diversidade Biológica, é apontado o desrespeito a quatro aspectos do acordo, a partir de farta documentação comprobatória.
O principal aspecto abordado na denúncia diz respeito à conduta do Brasil de liberar espécies transgênicas no país desconsiderando completamente os recursos técnicos formalmente apresentados pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) ao Conselho Nacional de Biossegurança.
As autorizações foram dadas pelo referido Conselho de Ministros, não obstante os questionamentos fundamentados dos referidos órgãos federais relacionados à ausência de análise de risco, à falta de avaliação caso a caso, à falta de comprovação científica dos dados apresentados pelas proponentes e à necessidade de complementação de informações e de realização de estudos específicos, independentes e no meio receptor.
A atuação do governo federal de liberar espécies transgênicas ignorando a posição contrária dos órgãos técnicos fere a determinação imposta aos países no Protocolo de Cartagena de velarem para evitar ao máximo ou para se reduzir os riscos para a diversidade biológica, considerando também os riscos à saúde humana (artigo 2º, 2).
A mesma conduta viola ainda a exigência feita aos países de conduzirem as análises de riscos de OGM de modo cientificamente sólido, levando em conta as técnicas reconhecidas de avaliação de risco, e em outras evidências científicas para identificar e avaliar possíveis efeitos adversos dos OGM na conservação e uso sustentável da diversidade biológica e considerando também os riscos para a saúde humana (artigo 15 e anexo III).
Os demais aspectos abordados dizem respeito à omissão do Brasil quanto aos movimentos transfronteiriços ilícitos de soja, algodão e milho geneticamente modificado, fato público que não mereceu nenhuma atitude das autoridades públicos, conforme indicado no Protocolo. E ainda à falta de medidas para garantir informação, conscientização e a participação pública em matéria de OGM e por fim à conduta omissiva relativamente à identificação dos carregamentos transgênicos.
O acordo vigora internacionalmente desde 11/09/2003 e no país, desde 22/02/04, tendo sido promulgado pelo Decreto 5.705, de 16/02/06. Já é tempo, portanto, de o Brasil respeitar as determinações do Protocolo de Cartagena sob pena de sofrer novos constrangimentos e ainda medidas de censura do Comitê de Cumprimento do Protocolo.
* Andrea Lazzarini Salazar é consultora jurídica do IdecFonte: Revista Última Instância (revista jurídica), Terça-feira, 20 de maio de 2008
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