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Transgênicos no reino da confusão

WASHINGTON NOVAES

Não se podem nem se devem subestimar a importância e o significado simbólico das vitórias obtidas pela ministra Marina Silva nas ultimas discussões, no âmbito do Executivo, em relação ao projeto de lei de biossegurança, que pretende, entre muitas coisas, regulamentar a questão do plantio e consumo de organismos geneticamente modificados (OGMs).

Ao preço de muito sofrimento e tenacidade, conseguiu a ministra incluir no projeto dispositivos importantes para uma visão mais “transversal” do governo nessa matéria, que não atendesse apenas aos interesses de parte do agribusiness, de plantadores e de produtores de sementes e agrotóxicos.

Mas também há razões para temer que, mesmo na mais favorável e improvável das hipóteses – que o Congresso aprove como está o projeto –, muitos prejuízos já sejam irreparáveis, como fruto da má condução desse tema no governo passado e no início deste. Há uma herança pesada e difícil de remover de fatos consumados, a começar do problema (que permanece) de não se definir uma estratégia: que lugar o País pretende ocupar na produção e comercialização de alimentos? Quer ou não produzir transgênicos?

Sob esse ângulo, a primeira questão a discutir é o que se fará no início de 2004, quando for realizada a colheita da soja transgênica plantada, com autorização de medida provisória, por agricultores que houverem assinado o termo de ajustamento de conduta exigido. Terá de ser comercializada, se foi autorizada e legalizada. E esse já é um fato consumado. Mas o que se fará com a soja transgênica colhida por agricultores que não firmaram o termo de ajuste de conduta exigido (e já se sabe que pouquíssimos assinaram até agora)? Vai-se permitir de

novo a comercialização?

E o novo plantio? A situação deles não será diferente da que levou o Executivo a assinar a medida provisória este ano. Nem o problema econômico terá menor vulto. Mas pode acontecer também de até lá ser julgada na Justiça Federal a ação movida pelo Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) e outros contra a liberação do plantio dada há anos pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). A soja, com ou sem termo de ajuste, poderá ser colhida, se a sentença que está em vigor for mantida?

Mais complicado ainda, e se até lá houver sido julgada procedente – ou concedida tutela antecipada – a ação em que o Idec pede que a Justiça determine à União e ao Estado do Rio Grande do Sul que impeçam a utilização do glifosato na soja transgênica? Não faz sentido plantar soja transgênica sem o glifosato. Mas o agrotóxico que o contém não tem autorização para ser utilizado – a negativa foi explicitada há poucos dias pelo Comitê Técnico de Assessoramento para Agrotóxicos.

Não é tudo. Mesmo com a aprovação do projeto de lei no Congresso, pode não haver licenciamento ambiental ou da Saúde, pode a soja ser ilegal porque usou glifosato não autorizado ou porque não houve ajusta-mento de conduta.

Mais um ângulo: como se resolverá a questão de estruturas de fiscalização (para este caso e para casos futuros)? O Ministério da Agricultura já afirmou não dispor delas. O Rio Grande do Sul, grande plantador da soja transgênica, também não. Os outros Estados não estão em melhores condições. Ainda na hipótese de o projeto passar como está pelo Congresso, outras questões poderão sobrevir.

Ao contrário do que vinha sendo noticiado, pelo projeto os pareceres da CTNBio terão “caráter conclusivo”. E, segundo o parágrafo 5.º do inciso XXI do artigo 12, “não se submeterá a análise e emissão de parecer técnico da CTNBio o derivado cujo OGM já tenha sido por ela aprovado”. Se é assim, muito menos o próprio OGM. E a soja transgênica já foi aprovada ali. Pelo parágrafo 2.º do artigo 14, os órgãos e entidades de registro e fiscalização (Meio Ambiente, Saúde, Agricultura e Pesca), se discordarem do conteúdo do parecer técnico da CTNBio, “poderão requerer a sua revisão”. O projeto não diz o que acontecerá se a CTNBio mantiver seu parecer. Supõe-se – não está escrito – que o órgão discordante possa recorrer ao Conselho Nacional de Biossegurança, criado pelo mesmo projeto de lei, a quem caberá“em última e definitiva instância” decidir.

Mas como ele é “órgão de assessoramento superior do presidente da República nessa matéria”, integrado por 11 ministros e um secretário especial, tomou-se um caminho que pode exigir a intervenção direta do próprio chefe de governo – o que é, no mínimo, complicado e inconveniente. Também na questão da rotulagem de produtos transgênicos poderão surgir problemas, uma vez que o artigo 22, parágrafo 1.º, estabelece que o regulamento (a ser escrito) “poderá estabelecer a quantidade mínima de OGM” que dispense a rotulagem. Parece claro que deveria estar escrito “quantidade máxima”, e não mínima.

Seja como for, o projeto de lei também não resolverá os conflitos federativos já estabelecidos – com o Paraná, que proibiu plantio, comercialização, transpor-te, trânsito, exportação da soja transgênica em seu território. Com Mato Grosso e Santa Catarina, que têm leis semelhantes. Com Goiás, onde plantadores (em maioria) e processadores não querem esse tipo de soja e se está discutindo na Assembléia a proibição. Como vários municípios que já a proibiram. E até com outros países que utilizam portos brasileiros para exportações de transgênicos.

Não é difícil antecipar que as confusões perdurarão, em vários âmbitos. Cada vez com mais fatos consumados, a impedir uma solução satisfatória – curiosamente, no momento em que mais e mais estudos científicos demonstram a variedade de problemas ambientais e até de saúde com os transgênicos. Além de questionarem a maior produtividade e/ou rentabilidade dos OGMs. Na Grã-Bretanha, no México, na Argentina, na Colômbia.

Diante disso tudo, os “ambientalistas” mais céticos quanto à definição de uma estratégia adequada pelo governo já se estão preparando mesmo é para novos rounds da batalha – quando se tratar do licenciamento do milho e do algodão. Porque, se os riscos com a soja – que não tem “parentes” na biodiversidade brasileira – já são inquietantes, nas outras duas espécies a possibilidade de problemas é altíssima.

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Washington Novaes é jornalista

E-mail: [email protected]

O Estado de S. Paulo, ESPAÇO ABERTO - SEXTA-FEIRA, 7 DE NOVEMBRO DE 2003
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