Um biólogo português passou cinquenta dias a palmilhar cinco países da África Ocidental. O roteiro da Food Systems Caravan foi repleto de conferências, aulas abertas e visitas a projetos de agricultura. No horizonte da caravana: a agroecologia e as soluções para a sustentabilidade dos sistemas agrícolas e alimentares.
“A agroecologia traz uma esperança de corrigir os erros do passado e não só preservar aquilo que ainda há, mas regenerar os sistemas, os solos, a diversidade que foi sendo perdida através de técnicas erradas e dum pensamento a curto prazo”, contou-nos Fernando Sousa desde Lagos, na Nigéria. O biólogo está agora de regresso ao FiBL, o instituto de pesquisa em agricultura biológica na Suíça onde é investigador em clima e fertilidade do solo. Mas o projeto que o levou a atravessar a África Ocidental permanece bem vivo.
Desde a receção a 19 de setembro em Bamako, Mali, pelo leão do reggae Tiken Jah Fakoly, uma visita a agricultores a trabalhar com compostagem e árvores fixadores de azoto com a associação NewTree no norte de Ouagadougou, Burkina Faso, uma aula aberta com mil raparigas da escola secundária de Bolgatanga no Gana, ou a entrevista a uma investigadora em genética e ecologia no Benim… Durante quase dois meses, a Food Systems Caravan fez pontes entre ciência e prática, entre agricultores, cientistas, ONG e estudantes, para promover a troca de conhecimentos, conectar pessoas e convidá-las a trabalhar em conjunto na transformação dos sistemas alimentares para sistemas mais sustentáveis.
“É necessário criar redes, dar visibilidade a projetos, iniciativas e pessoas. Há muita coisa para fazer, e há muita coisa já a ser feita”, assevera Fernando, “projetos que trabalham com uma visão ecológica da agricultura com uma dedicação incrível, que nos dão muita esperança”.
Um exemplo é o projeto agrícola de Ousmane, com quem Fernando se achou a conversar em português. Descoberto um dia por um caça talentos de futebol, passou nove anos em Portugal a defender a baliza de modestos clubes como o Pedras Salgadas ou o Vila Real. Depois de uma lesão o fazer pendurar as chuteiras, voltou ao Mali, reencontrou os pais, agricultores, e comprou duas quintas próximas de Bamako. Foi pelo YouTube que descobriu a agricultura biológica e decidiu participar em cursos e formações. Hoje a sua quinta é como uma mini aldeia, onde trabalham vinte pessoas e se produz ovos e legumes de forma biológica, para venda nos mercados locais.
Ousmane será um dos muitos intervenientes no documentário sobre a sustentabilidade dos sistemas alimentares na África Ocidental, fruto da Food Systems Caravan que estará pronto para colher em maio.
“A agroecologia é observar os sistemas agrícolas com um olhar ecológico. Olhar para a interconexão entre todos os elementos”, explica Fernando Sousa. “Quanto mais num ciclo fechado funcionarem, mais próximos da sustentabilidade estamos. É o oposto daquilo que se faz hoje em dia, em que exportas as tuas culturas e importas os teus nutrientes. É o pensamento a longo prazo. E saber que o todo é mais do que a soma das partes – e que é a saúde deste todo que nos dá a saúde também.”
Entre a atração e a repulsa
“Será possível fazer algo não para agradar aos financiadores, mas que saia do coração, que me apeteça mesmo fazer com paixão?” Foi a pergunta que germinou no jovem investigador, natural de Sintra, perante um apelo a projetos. E logo uma resposta: “Andar de um lado para o outro a espalhar ideias que podem mudar o mundo para melhor – e por em contacto as pessoas que podem agir sobre elas.”
A caravana foi uma oportunidade para regressar a um recanto do mundo que guarda no coração. Depois de ter estudado o impacto das monoculturas de caju para a segurança alimentar das famílias na Guiné-Bissau, integrou projetos do FiBL para o desenvolvimento da fertilidade dos solos no Burkina Faso e no Mali. Ao longo de três anos, foi percorrendo os países de mota, trabalhando com agricultores, testando métodos de compostagem e repelentes biológicos com plantas locais para substituir pesticidas.
A diversidade de línguas e de misticismos locais, a música sempre presente e sobretudo “a simplicidade da forma de estar e de viver o tempo” marcaram-no para sempre. Com o carinho pela região, veio a repulsa pelas mudanças rápidas que ali se observam. Por um lado, ao nível da relação entre as pessoas: “nas palavras dum amigo meu, ‘L’argent a tué la solidarité entre les amis’ (O dinheiro matou a solidariedade entre os amigos)”. Por outro, ao nível na degradação ecológica: “Falava com pessoas de noventa anos e todas diziam o mesmo: antes havia muito mais animais, mais árvores, mais floresta. Falavam-me da rapidez com que as coisas estão a mudar”, conta o investigador. “Em mais lugar nenhum a população está a crescer tão rápido e há uma degradação dos solos tão severa e generalizada como em África. Com as alterações climáticas, o avanço do deserto, tens uma combinação que é uma tempestade perfeita”.
Trabalhar no continente africano traz-lhe desafios éticos. O trabalho passa por “desconstruir a ideia do europeu como aquele que sabe mais”. Passa também por conhecer a história e reconhecer que “foram pessoas de pele branca que deixaram o legado de um continente artificialmente dividido, empobrecido, com dinâmicas de exploração existentes até hoje.” Para o jovem biólogo, “a dinâmica do comércio internacional, do neoliberalismo e da agricultura moderna tem deixado as pessoas muito vulneráveis.” Produtos importados, agronegócio, sementes transgénicas, fertilizantes e pesticidas químicos propagam-se, inferiorizando e ameaçando os sistemas, valores e saberes tradicionais. “A agroecologia traz uma forma completamente nova de olhar para a agricultura. Valoriza os saberes e sistemas agrícolas locais, revitalizando-os, trazendo também olhares, dados e descobertas de fora. Junta o melhor de dois mundos”, conclui.
Após umas férias em Portugal, Fernando acaba de regressar ao norte da Suíça de comboio – o seu meio de transporte de eleição. E lembra que falar de regeneração ecológica não é apenas urgente e importante na África Ocidental. Também em Portugal, onde há igualmente um declínio severo da qualidade dos solos, ou em regiões como a América do Sul, onde muitas das realidades indígenas e rurais “ficaram dependentes de ajuda do governo e da importação”. Ainda no rescaldo da aventura africana, Fernando Sousa sonha já em embarcar num projeto semelhante no Brasil, para ligar a agroecologia indígena e resgatar exemplos e técnicas ancestrais que foram sendo perdidas.
Fonte:Wort.lu em por Francisco Coaço Pedro em 08-03-2020 <https://www.wort.lu/pt/sociedade/um-investigador-portugues-em-busca-de-sistemas-alimentares-mais-sustent-veis-5e64ce35da2cc1784e357d57>
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