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Cooperativas e Pronaf, a parceria que deu certo

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Crédito era o problema. Para enfrentá-lo, em 1996, o governo criou o Pronaf. No mesmo ano, na cidade paranaense de Dois Vizinhos (30 mil habitantes), menos de dez agricultores familiares chegaram praticamente à mesma decisão: criaram a Cresol, cooperativa de crédito solidário. Pronaf e Cresol nasceram juntos, cercados de ceticismo e desconfiança mútua. Em Brasília se acreditava muito pouco na capacidade de pequenos agricultores do Paraná gerirem uma cooperativa de crédito, tarefa de banqueiros. No Paraná, os agricultores, alguns deles com primário incompleto, não confiavam em soluções vindas de Brasília. Ao fim de 11 anos, comprova-se que preconceitos conduzem a erros de avaliação. Pronaf e Cresol acabaram por interligar seus destinos. E são um sucesso.

O Pronaf , é sabido, já ajuda dois milhões de famílias a continuar no campo, resistindo e produzindo. E a Cresol, no início modesta repassadora de financiamentos do Pronaf, irradiou-se pelo sudoeste paranaense esprimido contra a fronteira da Argentina, numa faixa de terras das mais férteis do Brasil. Em poucos anos constituiu-se uma rede de 115 cooperativas municipais nos três estados do Sul, do Vale do Ribeira ao Chuí. A Cresol cresceu tanto que o Banco Central, para facilitar o trabalho de fiscalização, sugeriu que se dividisse em duas centrais: uma em Francisco Beltrão, sudoeste do Paraná, e outra em Chapecó, noroeste de Santa Catarina. Duas vezes por ano, o BC instala-se com auditores nas duas centrais e acompanha as filiadas por amostragem.

O sistema Cresol hoje é o maior repassador do Pronaf no Sul, superando bancos privados e rivaliza, no plano nacional, com o Basa, o BNBe o Banco do Brasil. Com créditos para a agricultura familiar que vão, mais freqüentemente, de R$ 800 a R$ 10 mil, só para 17 municípios do sudoeste do Paraná (13,664 mil associados) sua carteira de repasses somou, em 2006, R$ 70,271 milhões.

Os municípios do sudoeste paranaense têm nomes pitorescos: Coronel Vivida, Barracão, Marmeleiro, Nova Espero, Pranchita, Salto do Lontra, Santaí do Oeste, Itapejara, Chopinzinho, Manfrinópolis, Bela Vista do Caroba, Pato Branco, Novo Horizonte. (Neste último, num outdoor de 48 metros quadrados à entrada da cidade, o prefeito expõe o balanço financeiro de sua administração). Na região, as populações urbana e rural se equivalem e, no campo, a agropecuária familiar, além de predominante, é diversificada.

Cria-se galinha caipira, abelha jataí que dá bom mel, e planta-se cana para fazer açúcar mascavo e cachaça, e também arroz do seco, batata, frutas, amendoim, feijão, soja, milho, sorgo - os dois últimos para ração animal, pois a agricultura familiar da região descobriu, nos últimos dez anos, sua verdadeira vocação: produzir leite.

"Com vaca leiteira entra dinheiro todo o mês, não precisa esperar um ano para a colheita de safra. Basta encarar o trabalho com coragem, pois crédito do Pronaf a Cresol tem ", diz Nely Osório, dona com o marido e dois filhos de 32 hectares no município de Marmeleiro. A mãe de Nely, 84 anos, doou a propriedade com o compromisso de filha e genro a sustentarem pelo resto de seus dias - compromisso que, pela energia que demonstra e os palpites que dá nos negócios, vai levar ainda muito tempo para expirar. O marido de Nely, João, acrescenta: "Sem crédito, você não conseguiria comprar 4 vaquinhas de raça. Depois disso, elas próprias se pagam e dão um lucro bem razoável".

O primeiro Pronaf de Nely e João foi para 5 novilhas em 1997. Hoje, vários Pronafs depois, para financiar pastagem, ordenhadeira automática, tanque de expansão para resfriamento do leite, o casal tem 16 vacas da raça Holandês tratadas com homeopatia, sem produtos químicos ou antibióticos, e já vendeu 50 novilhas geradas com inseminação artificial. Nely não gosta das Jersey ("têm cara de depressivas") e se orgulha de Clara, a holandesa campeã que deixa na ordenhadeira de 20 a 22 litros por dia. As vacas costumam ter nomes na agricultura familiar e, em Salto do Lontra, a 55 quilômetros de Marmeleiro, mulher e filhas de Nercy da Silva (12 vacas holandesas, 10 hectares) costumam fazer a chamada na hora da ordenha. Se a convocada estiver no fim da fila, as outras lhe dão passagem.

Maximino Beal, presidente da Cresol de Salto do Lontra, tem sobre a mesa o " relatório de pré-vistoria" que um dos técnicos (agrônomo ou veterinário) da cooperativa acaba de realizar no lote de um candidato a crédito de R$ 3.000 do Pronaf Investimento para comprar uma ordenhadeira. Diz: "É arrendatário. Rebanho atual 4 vacas e 4 novilhas, área total 6 alqueires (14,5 hectares), planta soja, milho em 3 alqueires, 3 de pastagem. Leite, 1.500 litros mensais. Aprovado". A liberação do crédito vai ocorrer na apresentação da nota fiscal e o técnico fará nova vistoria para saber se a ordenhadeira está em uso.

"Às vezes, a gente não aprova porque o associado não pode pagar. Em outras, o técnico sugere mudança nos planos. Por exemplo, quer comprar quatro vacas mas não tem pasto. Sugerimos que compre duas vacas e use o resto do financiamento para melhorar a pastagem. É melhor um não bem dito do que um sim mal dito", afirma Maximino, ele próprio agricultor familiar, como todos os diretores da Cresol. Sua mulher e quatro dos cinco filhos ajudam no trato de 12 vacas Jersey em 18 hectares, a 10 minutos da sede do município.

A produção de leite na região cresceu tanto (27 mil famílias produzem 1,5 milhão de litros por dia, movimento de R$ 150 milhões por ano) que os produtores familiares se organizaram para melhorar o preço de sua relação com os lacticínios. Com apoio da Cresol, da Emater, do MDA, de sindicatos e várias prefeituras, surgiu o Sisclaf - Sistema de Cooperativas de Leite da Agricultura Familiar. Já são vinte e três as Claf da região. A própria cooperativa recolhe o leite com o produtor e o transporta até o lacticínio em caminhões tanques.

Acabou o que Maximino Beal chama de "relação de compadres" - "faço o favor de buscar o leite na sua porta e você aceita o meu preço". O preço é negociado pela cooperativa, que pode mudar de freguês ao final do contrato anual. "E agora tem nota fiscal, o governo gosta", diz Maximino. "É uma relação de mercado", diz Nercy da Silva, da Claf de Salto do Lontra.

As cooperativas agora se preparam para um salto de qualidade : a compra conjunta de plataformas de leite, tanques equipados com refrigeração para 30 milhões de litros, estratégica e geográficamente distribuídos na região, para armazenagem, conservação e venda no atacado. "Com essas plataformas", diz Nercy, "dá para pensar em mercado até fora do estado". Crédito, obviamente do Pronaf e repasse do sistema Cresol.

CNA quer ampliação do teto de financiamento

A Confederação Nacional da Agricultura (CNA) quer a ampliação do teto de renda bruta anual para que agricultores familiares tenham acesso ao Pronaf. "Se, na cidade, alguém com faturamento anual de até R$ 2,4 milhões é considerado micro-empresário, por que o seu correspondente no campo, o agricultor familiar, tem teto tão baixo, de R$ 80 mil?" pergunta Luciano Carvalho, assessor técnico da Comissão Nacional de Crédito Rural da CNA, designado pela diretoria da entidade para falar ao Valor sobre o Pronaf. "No ano passado, o teto subiu para R$ 80 mil. Foi um avanço, demonstrou que o viez de renda já não é dogmático", diz Carvalho.

A CNA tem mais dois pleitos ao Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), gestor do Pronaf: o primeiro é para que, no limite de propriedade que caracteriza a agricultura familiar (até quatro módulos fiscais), sejam considerados apenas os hectares agricultáveis. O segundo é que o número de empregados permanentes não seja limitante. "Dois empregados pode ser pouco, dependendo do que você produz. No Sul, você pode ter um hectare para produzir uva, mas na colheita tem de arregimentar um verdadeiro batalhão de empregados. Isso precisa ser rediscutido".

Entidade máxima da agricultura patronal, dentro da estrutura do sindicalismo brasileiro que vem de Getúlio Vargas, a CNA considera o Pronaf uma "boa política de governo, integracionista, com bons mecanismos de execução". Carvalho destaca o seguro rural do Pronaf, que teria, segundo ele, até melhor cobertura que o seguro comercial. "Nada contra o Pronaf, só queremos colaborar para seu aperfeiçoamento", diz Carvalho. "Até porque há muitos beneficiários do Pronaf, das categorias D e E , que são, oficialmente, representados pela CNA. Mais de 60% dos filiados à estrutura da CNA se situam entre os que agora se chama de agricultores familiares." (P T)

Na terra invadida, José só trabalha com orgânicos

"Não mexo com veneno. Aqui é só orgânico". José de Oliveira Pilar, gaúcho de Ciríaco, chegou a Barracão na decáda de 60 com o pai e 11 irmãos. "Lembro do velho, com um serrotão derrubando araucária para plantar soja. Eu catava ramos secos de pinheiro para acender o fogo da queimada".

A família se dispersou, cumprindo o destino de milhares de agricultores com pouca ou sem nenhuma terra: a periferia da grande cidade ou o (raro) emprego de pião na lavoura moderna.

José resistiu. Depois de vagar pelo Paraná inteiro, fez seu rancho na curva de um caminho de terra que leva a Marmeleiro, 17 hectares com boa água, boa terra e alguma mata nativa. Com a mulher Teresa e os cinco filhos, plantou amendoim, mandioca, arroz do seco, feijão, milho, soja, criou galinhas, porcos e vacas leiteiras das raças Girolanda e Jersey. Isso foi há 4 anos e meio. Hoje tem um plantel de 8 vacas leiteiras e uma dúzia de bezerrinhos.

Aos 46 anos, não faz mais queimada e tem religioso horror a agrotóxicos. Chapéu de palha furado, facão na cintura, camisa remendada (acabava de ajudar um vizinho na capina), mostra como protege de pragas a soja orgânica. Em uma estaca à altura do pé de soja e distribuidas a cada seis metros de distância, pendura garrafas de plástico. A metade de cima tem vários furos, a de baixo é um depósito de urina de vaca, sal e água. "O cheiro atrai o bichinho, que entra pelo buraco e morre", diz José. "Você bota no início da florada e deixa até a soja lourar (ficar amarela)".

José tem outros truques. Cercou todo o espaço de sua lavoura com três carreiras de capim-elefante, espadas verdes que crescem, cerradas, a três ou mais metros de altura. "É para barrar o veneno que vem do transgênico na plantação dos vizinhos". (Em Salto do Lontra, Maximino Beal é de um pessimismo conformado: " Não tem mais jeito, nem capim-elefante segura. A abelha voa quatro quilômetros, e vai espalhando o transgênico").

A insistência com o orgânico tem sido bom negócio para José. No ano passado conseguiu entre US$ 18 e US$ 21 por saca que colheu (colheu 130). A soja convencional estava a US$ 13 (a transgênica também; o lucro com esta vem da produtividade). No milho orgânico, recebe 40% a mais. Este ano, ainda não colheu toda a soja e vai esperar para ver o comportamento dos preços, mas não espera uma produção maior. "Deu alguma ferrugem e desconfio da semente. Como por perto há mais seis que só mexem com orgânico, a gente pensa em um de nós plantar só para semente e vender para os outros".

A atribulada vida de José estaria resolvida não fosse um detalhe. A terra que ocupa é uma invasão. Nas imediações, há três assentamentos do Incra (Perseverança, São Jorge e Anjo da Guarda), perfeitamente legalizados, com 52 famílias em 982 hectares. Os assentados têm casa de alvenaria, jardim bem tratado, cerca elétrica para manter os animais estabulados e separados da plantação -depois de seis meses pode desligar a corrente que os animais não mais se aproximarão de arames - e toda assistência técnica, além de créditos do Pronaf. José não tem nada disso, à exceção do Pronaf C. (Seu financiamento atual é de R$ 4.900).

"É uma questão de titulagem, sei lá. Falam até que o Brasil tomou estas terras da Argentina, por isso não pode nos dar o título", diz José, confuso (ele só tem dois anos de estudo). A verdade é que em 1999, o governo FHC decidiu não mais legalizar ocupações de terras a 150 quilômetros da faixa de fronteira e o rancho de José está a 94 quilômetros da província de Misiones. A invasão já tinha ocorrido nessa época, mas o Incra acabou legalizando os acampamentos vizinhos e esqueceu o "acampamento" São Francisco, os 600 hectares que José e mais 59 famílias ocupam. (Os acampamentos legalizados foram promovidos a assentamentos). Em 2000, dois empresários conseguiram na Justiça a posse dessas terras, mas, segundo circula na região, sua intenção é vendê-las ao Incra.

O deputado federal Assis Miguel do Couto (PT) foi o primeiro presidente da Cresol de Francisco Beltrão e conseguiu em Brasília aprovar projeto de lei que torna a agricultura familiar uma categoria profissional. O deputado disse ao Valor que está empenhado em resolver o problema. Enquanto isso, José continua a ouvir pelo radinho de pílha as notícias que os assentados recebem pela TV e a andar 400 metros para buscar carne e lacticínios na casa de um assentado. José comprou um freezer na safra passada e o guarda com o vizinho. (PT).

Fonte:Paulo Totti para o Valor Econômico em 13/4/2007

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