* J. W. Bautista Vidal e Gilberto Felisberto Vasconcellos
Estamos de acordo que o raciocínio dialético não é um atributo
necessariamente de autoria marxista. Ainda mais no caso de se lidar com as
leis e princípios da natureza. O procedimento científico é intrinsecamente dialético. O ser social e a natureza interagem naturalmente, mas o que tem
acontecido nos últimos 150 anos é a tendência em .valorizar-se ao extremo a dialética do ser social em detrimento da dialética da natureza.
Quem o diz é o filósofo marxista Luckàcs, entrevistado durante a década dos 80 e referindo-se ao clássico Historia e Consciência de classe, escrito
em 1917: "O erro ontológico fundamental de todo o livro é que eu, na
verdade, reconhecia apenas o ser social como ser e rejeitava a dialética da
natureza. O que falta à História e Consciência de Classe é a universalidade
do marxismo segundo a qual o orgânico provém do inorgânico e a sociedade por
intermédio do trabalho, da natureza orgânica".
Devemos ponderar nisso o seguinte: é um equívoco considerar que a noção
de trabalho se limita exclusivamente ao ser social, como se o único trabalho
fosse o realizado pelo ser humano, quando na verdade o trabalho resulta
forçosamente da existência de energia, que é parte intrínseca da natureza. O
homem não cria nem destrói energia - a energia como pré-condição para que
haja trabalho -; o homem apenas a usa e a transforma. Ou seja, a energia
precede a existência de qualquer tipo de trabalho. No caso do trabalho
humano, o homem ingere energia pelos alimentos, o que o capacita a produzir
trabalho muscular e intelectual. A caloria do alimento provém, em última
instância, da energia solar que gera a vida vegetal e animal dos quais
resultam os alimentos. O trabalho humano é, portanto, uma forma particular e
limitada de trabalho.
Além do fundamento científico dessa noção abrangente de trabalho, a ênfase
hoje posta na natureza não é por acaso, de vez que o processo
civilizatório - resultante do ser social - está comprometido por causa do
ocaso da forma energética que predominou nos últimos duzentos anos, em que a
natureza foi relegada a segundo plano e submetida a tratamento predatório,
dando por suposto que ela responderia sem problema às demandas do ser
social, embora muitas vezes desrespeitando as leis e princípios que a regem.
Trata-se assim de equívoco revelador de uma concepção instrumental e
mecanicista da natureza que coloca em risco o futuro da vida humana e o
equilíbrio termodinâmico da ecoesfera.
Uma coisa é irrecusável: uma civilização solidária e justa requer que a
natureza ocupe papel absolutamente essencial, especialmente nos trópicos..
Nesse aspecto - saber se tal civilização exige um sistema socialista ou
não - é preciso antes considerar que a energia determinante do funcionamento
da sociedade nos últimos 200 anos foi, primeiro, o carvão mineral e, depois,
o petróleo, o que dá margem ao raciocínio, levando-se em conta a situação
atual dessas duas formas, que a energia futura não poderá ser baseada neles.
Uma civilização solidária tal qual imaginamos, é incompatível com o
mercado capitalista ancorado em sistema momentâneo artificial, perverso e
desvinculado do mundo concreto.
A insistência em relação ao dinheiro falso - de referência internacional,
o dólar - é a negação do trabalho e da natureza como fontes de riqueza.
Historicamente a mudança de uma matriz energética para outra - no caso do
carvão mineral e petróleo para a biomassa - significa a possibilidade de
avanço social e adequada distribuição de riqueza.
Não há dúvida de que as formas fósseis afastam a possibilidade de um
sistema social mais justo, uma vez que suas reservas e seu controle são
concentrados. Ao contrário, no caso da biomassa, amplamente desconcentrada,
democrática, permite concluir que existe nos trópicos a possibilidade
objetiva de uma existência social cuja riqueza não seja restritiva para a
grande maioria devido a extensiva distribuição geográfica da biomassa.
Um exemplo muito elucidativo do elevado potencial de formas energéticas é
o caso de Cuba. Pa ís situado no Caribe, nos trópicos, permanece atrelado à
forma f óssil importada, estando sujeita a enorme vulnerabilidade externa,
quando poderia utilizar a biomassa para alcançar a auto-suficiência
energética. Cuba é o exemplo paradigmático de alienação energética, muito
embora seja um país socialista no qual não se descobriu a natureza pródiga
dos trópicos, pelo menos do ponto de vista energético.
Carece de carvão mineral e de petróleo, entretanto, não lança mão do
potencial energético da biomassa, Cuba, assim, está condenada a não
desenvolver com autonomia suas forças produtivas e a congelar o seu
desenvolvimento tecnológico, apelando para um dispositivo vicário a exemplo
do turismo internacional como fonte de renda. Este exemplo revela como o
marxismo ainda não se ocupou dos trópicos, talvez por raciocinar
exclusivamente com o binômio capital & trabalho, o que significa limitação
conceitual grave no entendimento do processo civilizatório.
Convém sublinhar que a experiência socialista cubana, com a matriz
energética da biomassa, seria um exemplo notável de vanguarda para todas as
regiões tropicais do planeta na superação dos colapsos ecológicos e dos
combustíveis fósseis. Cuba padece de uma dupla dependência: a necessidade de
exportar açúcar - commodity internacional - com objetivo de importar
petróleo, o qual é necessário até para gerar energia elétrica. Surpreendente
que não é apenas num país capitalista, sob o cerco do imperialismo
financeiro como o Brasil, em que somos obrigados a ficar atrelados ao
petróleo. Em Cuba acontece a mesma coisa por outros motivos, mas lá a
atitude do Estado em descartar a biomassa como programa de desenvolvimento
assume uma feição desastrosa na realização plena de uma sociedade livre e
autônoma. É o infortúnio do socialismo dependente. Equívoco maior ainda de
ordem geopolítica uma vez que a ilha detém condições naturais favoráveis
com sol, solo e água abundantes Cuba tem palmilhado o caminho do petróleo
e da energia nuclear para gerar eletricidade. Felizmente a alternativa
nuclear não seguiu adiante, mas de tudo isso pode-se concluir, com o exemplo
da alienação energética cubana, que o marxismo até hoje não descobriu os
trópicos, ao evidenciar que a solução energética da humanidade encontra-se
nas regiões tropicais.
A energia que presidirá o funcionamento de um futuro sistema socialista é a energia da biomassa - e não o petróleo ou o carvão mineral porém a
matriz energética da biomassa não leva necessariamente ao socialismo. É possível a coexistência da biomassa "plantation" multinacional de
biomassa com um sistema social escravizado, em que o Brasil repetiria o
ciclo colonial do açúcar, do ouro e do café.
A história recente do Brasil responde às questões sobre o que entendemos
por luta de classe, poder e Estado. Teoricamente o Estado é um instrumento a
favor da nação e não há condições de se implantar uma nova matriz energética
sem tomar as rédeas de poder do Estado. Ele afigura-se imprescindível à
reinvenção de uma moeda verdadeira, lastreada em patrimônio natural,
estratégico, desvinculado do dólar. A emissão de dinheiro falso, cada vez
mais abstrata e delinqüente, tem destruído a base concreta da natureza como
elemento essencial do processo civilizatório. Essa emissão porém está
vinculada ao petr óleo por domínio militar e enredado no arsenal midiático
hegemônico, enquanto o verdadeiro enfoque energético e tecnológico sobre os
trópicos nos converte em sujeitos da história pela superação da nefasta
ideologia colonialista da moeda falsa baseada no petróleo.
É preciso deixar claro que quando sublinhamos essa possibilidade objetiva,
que está rastreada nas condições geográficas fornecidas pela natureza
tropical, não nos movemos por nenhuma pulsão voluntarista, nenhum desejo
alucinado de utopia, nenhuma quimera mística ou devaneio quixotesco. Nosso ponto de vista analítico é o da ciência física, com o cemitério da
terra e sob a mira do sol, cuja abordagem fundamenta-se no tempo histórico
do século XVI até os dias de hoje. Trata-se de uma filosofia da história
orientada pela determinação do espaço dos Trópicos, em que se descortina a
possibilidade de vir a ser sujeito, revertendo o destino de objeto da
exploração colonial. O argumento irrefutável da energia, aponta as zonas
intertropicais como o epicentro da aventura humana neste século da biomassa,
sendo ineludível o adeus definitivo ao carvão mineral e ao petróleo, os dois
combustíveis em fase de exaustão de uso que serviram de alimento para o
exaurido corpo e o espírito decadente do capitalismo financeiro da moeda
falsa. É por isso que a existência imperialista colonial nos coloca
contraditoriamente em face do poder dos trópicos e da alienação energética
da civilização suicida dos combustíveis fósseis no ocaso. Na política somos
nacionalistas porque o sol está a favor da nação.Salvo poucas exceções a
nuclear, a das marés e a geotermia - é da energia solar que se origina quase
todas as formas de trabalho, É o socialismo moreno de Darcy Ribeiro com a
biomassa revolucionária e limpa.
Não é por acaso que os atuais representantes do colonialismo teimam em
anunciar a estupidez do fim da história. O reflexo disso pode ser observado
na internacionalização malandra da dependência construída por FHC e
repercutida de modo parvo neste limiar do governo Lula, sendo este a um só
tempo instrumento e v ítima do estéril capitalismo vídeo-financeiro.