Marcos Sá Corrêa, Manoel Francisco Brito,
Lorenzo Aldé, Andreia Fanzeres e Juliana Tinoco
O Eco
11.02.2006
Filho do cineasta Zelito Viana e sobrinho de Chico Anísio, o ator
Marcos Palmeira sempre esteve inserido no mundo do cinema e da
televisão, mas foi outra influência familiar que o aproximou do meio
ambiente. Seu avô Sinval Marcos Palmeira, um político comunista,
tinha uma fazenda de 5 mil hectares no sul da Bahia. Era uma fazenda
com mata, onde o avô tentava implantar idéias conservacionistas que
iam desde usar esterco como fonte de energia até evitar
desperdícios, derrubada de árvores e o desvio de rios. Com a morte
do avô, Marcos se viu defendendo a forma de pensar do velho Sinval,
mas não conseguiu convencer a família. "Fui para lá ajudar a cuidar
dos cavalos. E tinha muita divergência. Eu via um morro pelado e
perguntava por que não deixavam as árvores crescerem, por que o gado
tinha que pastar no morro se tinha tanta baixada. Aí todo mundo
dizia que o Marquinhos era um filósofo. Bonitinho, mas não entende
nada de fazenda", conta. Sem querer bater de frente, o ator comprou
uma fazenda na região serrana do Rio, com o objetivo inicial de
criar cavalos. Quando abriu os olhos, já era um produtor e defensor
engajado da agricultura orgânica. Que mudou a sua forma de ver o
mundo.
Como você descobriu os orgânicos?
Marcos Palmeira – Em 1997 resolvi ter a minha fazenda. Comprei uma
terra em Teresópolis, queria mexer com leite e cavalo. Não tinha
ainda visão de preservação, nada disso. Tinha um amigo na Bahia, o
Rildo de Oliveira Gomes, que falou: "Marquinhos, o que você comprar
eu vou tomar conta. Não se preocupe, eu vou cuidar para você. Só se
preocupa em ter pasto e água". Fiquei um ano e meio procurando até
que um dia me ligaram e disseram que tinha um suíço que queria sair
do Brasil, vender sua fazenda de porteira fechada, e estava
baratíssimo. Me encantei pela fazenda. Cheguei tipo cinco horas da
tarde, vi a fazenda no lusco-fusco, fechei o negócio às oito horas
da noite e no dia seguinte ele foi para a Suíça.
A fazenda mexia com orgânicos?
Marcos Palmeira - Não, mas mexia com verdura, salada, produzia para
o Carrefour. Decidi continuar produzindo.
Você deixou de lado o plano de trabalhar com cavalo e gado?
Marcos Palmeira - Não, porque o Rildo era um ótimo queijeiro. E
tinha espaço na fazenda. Mas ficamos focados na coisa das alfaces. O
Rildo nunca tinha visto um pé de alface, mas começou a se apaixonar
pelo negócio. Até o dia em que a gente descobriu que ninguém comia o
que estava produzindo. Isso foi uma coisa bem chocante.
Como assim?
Marcos Palmeira - Eu vi que as pessoas que trabalhavam na horta,
hoje são 28, não comiam o que plantavam. Pensei que tinha alguma
coisa errada. "Nós não vamos comer, doutor. A gente está botando
veneno aí, faz mal. Meu filho está com problema na vista, eu estou
com um problema na coluna, minha mulher diz que é do veneno...".
O que você fez?
Marcos Palmeira - Procurei João Carlos Ávila, que é o maior
especialista em biodinâmica no Brasil e trabalha na Associação
Biodinâmica, lá em Botucatu. O Rildo, no meio do caminho, foi em um
encontro de agricultura orgânica no Brejal, no Rio, e voltou
contando que tinha encontrado uma pessoa que era mais louca do que a
gente. "O velho fala com formiga, uma loucura", dizia. Aí ele veio
para a fazenda e realmente virou a nossa cabeça. Nos convenceu que o
nosso foco tinha que ser a terra, e não a planta.
Como assim?
Marcos Palmeira - A agricultura tradicional se preocupa com o
produto em si. O que importa é aquela alface sair e vender. No
orgânico, o que importa é a qualidade do solo. A alface, a cenoura,
são conseqüências. A qualidade do solo é que vai te garantir
produzir aquele produto durante a vida inteira, se você quiser. Por
exemplo, deu muita formiga na fazenda. O convencional manda você
meter remédio na formiga. Mas qual o problema da formiga? Ela não
pode comer a sua alface, mas ela pode existir na sua fazenda. Você
tem que criar uma forma de a repelir da alface e dar condições para
que ela sobreviva. Se não você vai passar a vida inteira lutando
contra a formiga e botando adubo na terra, porque ela já vai estar
totalmente desgastada. Caiu a ficha e eu comecei a me interessar.
Fui ler, participar de encontros e de congressos como ouvinte.
Começamos a trabalhar com galinha d'angola para controlar as
formigas. A gente já tinha um gadinho para controlar os carrapatos.
Tiramos todos os remédios, o carrapaticida, o vermífugo. Decidimos
trabalhar com ervas, com fitoterapia. Quando vi estava completamente
envolvido, descrente de todo o convencional, que passou a ser um
papo para boi dormir.
Mas não teve uma queda de produção?
Marcos Palmeira - Logo no início teve. O Rildo era o cara da
produção e eu era o teórico do negócio. Ele abria as acelgas e
gritava: "Olha, orgânico é essa merda aqui!" - as acelgas estavam
cheias de bicho. E eu dizia calma, a gente vai chegar lá. Tinha umas
discussões barra pesada. Porque o cara que fica no campo perde uma
acelga e fica indignado.
Como era a fazenda?
Marcos Palmeira - A fazenda era bem devastada, toda pelada, não
tinha nem passarinho por causa da contaminação de agrotóxico. Em
volta, todos são produtores convencionais. Agora as aves voltaram.
Hoje é uma variedade enorme, tem canário-da-terra... Meu sonho é ver
um tucano cruzando a fazenda. Nesse dia eu vou estar realizado. Mas
a fazenda começou a ser produtiva.
Em quanto tempo?
Marcos Palmeira - Comprei a fazenda em janeiro de 1997, em outubro
eu entrei em contato com o João Carlos Ávila. Foi bem rápido, foi
uma sorte. Se eu não tivesse percebido que os empregados não comiam
o que plantavam, talvez eu nem tivesse me tocado. Ia estar
produzindo e vendendo os produtos para o Carrefour até hoje. Depois
contratei um consultor que tinha conhecimento de cultura orgânica,
mas não entendia de administração. Nesse meio tempo, o Rildo morreu.
Ele tomou um tiro na cabeça durante um assalto na fazenda em 2000.
De lá pra cá , fiquei patinando na mão de todo mundo, eu também não
tenho tempo de ficar lá dentro. E cada um quer fazer uma coisa, tem
uma idéia genial. E tome dinheiro! Mas em 2005 eu conheci o Aly
Ndiaye, um senegalês que entrou para a fazenda, pegou os números
para ele e há quatro meses não boto mais um tostão.
Para quem você vende?
Marcos Palmeira - Eu vendo só para o supermercado Zona Sul, e só o
que produzo, os orgânicos. Eu tentei construir uma parceria com a
Horta e Arte, em São Paulo, para fazer uma rede de produtores e
transformar o orgânico em uma coisa mais popular, deixar de ser
elitista. Mas eu só me ferrei, em tudo o que eu me envolvi o
interesse nunca era exatamente naquilo. As pessoas tinham interesse
no meu nome ou em usar o que eu já tinha, como meu caminhão. Nunca
tinha benefício para mim. Meu consultor fazia política com todo
mundo e eu só percebi isso depois. Hoje ninguém pede nada. Oferecem
uma parceria, é diferente.
Dá um exemplo de parcerias que deram certo e que não deram certo.
Marcos Palmeira - A Horta e Arte. Ela trabalhava com 250 pequenos
produtores no estado, todos com problemas no mercado. Eu tinha
acesso ao mercado do Rio de Janeiro e cheguei a fornecer para as
Sendas, Pão de Açúcar e Zona Sul. Sempre orgânicos. Eu pensei em
fazer uma parceria, aumentar o meu mix e entrar no mercado com
frutas, tipo abacaxi, melão, pêra, morango. Fui para São Paulo com
esse consultor a tiracolo e conheci os "cabeças" da Horta e Arte.
Eles foram na fazenda, onde eu produzia 100 produtos orgânicos. Aí o
consultor virou para mim e falou: "Você vai produzir só quatro
produtos, que é mais que suficiente, e a gente vai entrar em São
Paulo". Nisso, deixei o Zona Sul. Na época eu tinha uma receita de
50 mil reais, mas com a mudança ela caiu para 25 mil. Foi quando me
toquei que tinha tomado uma volta. Os caras ganharam mercado no Rio
de Janeiro, ganharam forte, e eu perdi o mercado que tinha. Eu só
não quebrei por causa da Rede Globo, o meu salário permitiu que eu
segurasse. Se eu fosse um produtor que vivesse daquilo, teria
quebrado completamente.
Como se recuperou?
Marcos Palmeira - Comecei tudo de novo. Procurei o Zona Sul e eles
voltaram a vender a minha marca, Vale das Palmeiras. Mas levei um
tempo para reconquistar esse mercado. Foi quando conheci o Aly, que
trabalha com pequenos produtores. Hoje faço uma coisa que nunca
tinha feito antes, que é me aproximar dos produtores do Rio.
Você está intermediando os outros?
Marcos Palmeira - Exatamente. Se o produtor tem excedente de
mercado, eu compro por um preço justo. Eu produzo 300 litros de
leite e descobri que perto de Friburgo, em Além Paraíba, tem um
fazendeiro que produz leite orgânico. Ele bota na cooperativa a 20
centavos. Fiz um acordo em que pago um real pelo litro dele.
Levantei o produtor e quase dobrei a minha produção de queijo.
Liguei para a Sendas, falei com Arthur Sendas, que ficou
interessado. Essa coisa de ser ator ajuda, mas não mantém. Agora eu
botei até meu rosto na embalagem, apelei geral.
Fornece também para lojas pequenas?
Marcos Palmeira - No auge das minhas despesas eu ataquei de tudo.
Entregava em supermercado, restaurante e cesta a domicílio. Aí
comecei a ficar louco, porque não tinha estrutura. O mercado de
orgânicos ainda é muito complexo. Meu produto ainda é mais barato
que o convencional. Porque não leva fertilizante, é preço de
produção. Mas quando chega no mercado, eles botam 150% em cima.
Dizem que se botar barato o povo não compra. Essa consciência ainda
é difícil. Eu queria experimentar um sacolão orgânico para ver se
não ia sair que nem água. Tudo a um real, 50 centavos.
A certificação encarece?
Marcos Palmeira - Eu estava com a certificação do Instituto
Biodinâmico de São Paulo. É muito caro, é meio absurdo o que eles
cobram. Para o pequeno produtor é difícil. Agora eu saí e estou na
Associação de Agricultores Biológicos do Estado do Rio de Janeiro,
uma certificadora que tem um custo muito menor.
Você faz tudo isso por negócio?
Marcos Palmeira - A fazenda hoje se paga, então eu acredito nela
como negócio. Produzir alimento lida diretamente com o problema
brasileiro da fome. Você produz e viabiliza as pessoas comerem um
alimento saudável. Eu me apaixonei por isso, e transcendeu a
produção. Hoje sou associado do Greenpeace. Eles mandam para mim
documentários sobre soja transgênica, estou meio envolvido. Se
acordar, o Brasil pode se tornar o maior celeiro de produtos
orgânicos do mundo. O potencial de produção é enorme. A fazenda tem
que ser um negócio, ela tem que ser lucrativa para que a vida
daquelas pessoas seja viável. Na fazenda da minha família na Bahia,
eles produzem uma média de 10 caminhões de esterco por dia. Eles têm
búfalo, que poderia ser certificado orgânico.
Você já foi de carro para lá?
Marcos Palmeira – Já, e fiquei chocado com o que vi. Meu pai viajou
comigo, eu olhando a paisagem degradada, e chegou uma hora em que
ele me perguntou se eu não conseguia ver beleza em nada daquilo.
Falei que não, que estava pensando no que poderia ter sido. Eu já
passei pelo interior de São Paulo, Minas, Goiás e Mato Grosso e é
impressionante: tudo parece que é o mesmo lugar. Não tem mais
diversidade. É tudo soja.
Qual a proporção que os orgânicos tomam de seu tempo?
Marcos Palmeira - Quase 50%.
Quantas palestras você faz?
Marcos Palmeira - Umas dez por ano. Fui a Rondônia, Prudentópolis
(PR), interior de Alagoas. E sempre para pequenos produtores. Chego
nos lugares, na Biofach por exemplo, e eles me perguntam se eu tenho
interesse. A de Prudentópolis foi assim. Na décima vez que me
convidaram, aceitei. Não sei nem aonde isso vai chegar. Minha mãe
fala que sou muito fundamentalista.
Nestes nove anos, com que cara foi ficando a fazenda?
Marcos Palmeira - Eu interferi o mínimo possível na fazenda. Não se
mata nada, não se corta nada, não se caça nada. Caçar já fazia parte
da Bahia. O curral é forrado de teia de aranha. Quem chega acha que
sou descuidado, mas você não tem uma mosca lá dentro. As aranhas
ficam felizes, não perturbam a vida de ninguém. Os pássaros
começaram a voltar porque a gente deixou o mato crescer. Tenho tatu
e tamanduá no meio da lavoura. Separamos um cantinho nos brócolis
para o tatu. Ele vai lá e come só dois. Tem também jacu e siriema.
Os bichos estão se aproximando. Outro problema que eu identifiquei
lá foi a baixa auto-estima das pessoas da fazenda. Eram
desgrenhadas, maltratadas, sujas. Eu tenho paranóia com dente e
contratei um dentista. Terça e sábado era dia de dentista e fiz a
boca de todo mundo. O retireiro não falava, a gente não sabia qual
era o grau de escolaridade que ele tinha. Depois que botou o dente,
passou a falar e recebe as pessoas na fazenda, anota, é um cara
super inteligente.
Qual o lugar mais feio e degradado que você conhece no Brasil?
Marcos Palmeira - O Rio Grande do Sul, eu acho. Não sei se por ter
sido onde se iniciou o plantio de soja e houve desmatamento
violento. Na Amazônia você sabe que está destruído, mas quando chega
a imponência da mata ainda te dá um refresco, ainda tem o que
cuidar. O Rio Grande do Sul me dá a impressão de que já não tem
muita coisa. Tem os pampas. Outro estado é Espírito Santo.
Achei que você ia responder Rio de Janeiro.
Marcos Palmeira - É, então eu mudo minha resposta: acho que o Rio é
o pior lugar do Brasil hoje. Não tem ordem, política, todo mundo faz
o que quer. Tem que ter uma organização. A gente está desenvolvendo
um projeto de agricultura orgânica na aldeia dos xavantes, no Mato
Grosso. O que eles compravam na cidade, eles estão plantando na
aldeia. O problema é que a gente não se organiza. As pessoas não se
enxergam inseridas no meio ambiente. Para mim esse é o grande
problema, e está ligado com todas as relações que a gente tem. Você
não sabe quem é o seu vizinho, não cumprimenta o seu porteiro.
Ninguém está muito interessado no problema dos outros. Eu preciso
ficar atento para não me dispersar na minha carreira como ator, que
estou construindo. Mas esse outro lado me dá muito tesão. Eu seria
capaz de abrir mão de tudo para estar nessa luta ambientalista. Mas
tendo cuidado para amanhã não estar sendo queimado. Hoje eu estou
mais ligado na ação na minha fazenda, nas parcerias, nesses
encontros, nessas pessoas de Prudentópolis. Por que ali as pessoas
estão preocupadas com os outros.
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