REVISTA GLOBO RURAL N. 177 Julho de 2000
PALAVRAS-CHAVE: Agricultura familiar - Cr�dito Rural Alternativo -
Agricultura Org�nica � Gera��o de Renda no Campo
Algo mais que adeus
Na repactua��o do homem com a natureza, e do futuro com a diversidade,
pode estar a for�a renovadora da agricultura familiar, que re�ne 4,1
milh�es de estabelecimentos no pa�s
Por Claudio Cerri
Essa � a hist�ria de um fracasso anunciado, mas seus personagens
queimam de vontade de vencer. � a hist�ria de homens e mulheres que, a
exemplo de velhas gera��es de �ndios do Xingu, t�m a intui��o
desconcertante da pr�pria extin��o. Mesmo assim, teimam em subverter a
trama, recusando-se a interpretar o ponto final de seu destino. �,
portanto, uma hist�ria de resist�ncia. Por isso, de esperan�a. O
cen�rio escolhido � o Sul do Brasil, porque nele a dualidade entre
extin��o e renova��o, entre tradi��o e futuro, revela alguns
�ngulos
da mais cortante transpar�ncia. Mas poderia ser em qualquer outro canto
do pa�s. Nos 500 anos de Brasil, candidatos n�o faltam � lista de
perdedores. Gente � margem, que insiste em sobreviver, protagoniza por
exemplo o cotidiano da maioria dos 4,1 milh�es de n�cleos de
agricultura familiar que representam 85,5% do total dos estabelecimentos
no campo. Insufici�ncias de terra, de tecnologia e de cr�dito comandam
seu decl�nio, potencializado agora pelo avan�o da automa��o nas
opera��es de colheita e p�s-colheita e pelas novas exig�ncias de
escala
produtiva. Parceira subalterna da grande lavoura e sua principal fonte
de bra�os durante s�culos, a pequena propriedade familiar vem perdendo
densidade na engrenagem agr�cola convencional. Ela ocupa 30,5% da �rea
cultivada e garante significativos 38% da produ��o. Mas � cada vez mais
dif�cil enxergar esse mundo sem a condescend�ncia que se oferece ao
que
agoniza. Ver nesses rostos e m�os, nessa arquitetura e utens�lios, na
modula��o oral de sua cultura e na paisagem que constroem algo mais que
a hist�ria encapsulada em passado, � quase afrontar a linha do tempo. A
evas�o de sua juventude s� o confirma. Mas e se n�o for assim? E se
esses perdedores conservarem na silenciosa resist�ncia dos que ficaram a
presen�a de uma insubstitu�vel fagulha de futuro?
A d�vida magnifica a inconcili�vel conviv�ncia do mundo atual com
tradi��es e modos de vida n�o completamente aculturados pelo mercado.
N�o faltam ilustra��es de uma l�gica implac�vel. N�cleos tradicionais de
imigra��o alem�, italiana e polonesa, por exemplo, fixados no oeste
paranaense, em geografias perme�veis � soja e �s m�quinas, n�o tiveram a
sobrevida desfrutada por seus compatriotas das Encostas da Serra Geral
catarinense, protegidos pelo esquecimento e isolados pelo relevo
adverso No oeste do Paran�, no munic�pio de
Pranchita, ao contr�rio,
a imagem desolada de um cemit�rio campon�s perdido no meio de um campo
de soja testemunha a l�gica avassaladora que atingiu a antiga vila de
Santa Cruz do Oeste, a exemplo de centenas de outras por todo o pa�s. Os
sobrenomes grafados nas l�pides apontam a mesma origem migrat�ria que
formou comunidades como as de Rancho Queimado e Santa Rosa de Lima,
poupadas pelas escarpas �ngremes de Santa Catarina e agora reveladas em
sua beleza por um projeto de agroturismo. Quantas etnias, culturas e
modos de vida n�o tiveram ep�logo semelhante? Quantos pa�ses n�o
foram
descartados at� chegar no que somos hoje? E, no entanto, quanta
dignidade exibem no olhar esses sobreviventes, a questionar com a sua
imensa riqueza de vida o acerto dessa trajet�ria de que somos feitos,
as perdas n�o contabilizadas, o custo de sua persist�ncia no futuro.
A desintegra��o social e cultural � a contrapartida inevit�vel dos
processos deintegra��o econ�mica orientados pela b�ssola exclusiva do
mercado. Foi assim na hist�ria da maioria das na��es. Mas o que
distingue o caso brasileiro � o fato de aqui ter se aprofundado ao longo
do tempo, e n�o abrandado, uma din�mica de exclus�o social in�dita no
planeta. A concentra��o do patrim�nio, da terra em especial, � um de
seus pilares mais perversos, conforme admite estudo recente do Banco
Interamericano de Desenvolvimento. O BID adverte que � imposs�vel
o
desenvolvimento econ�mico est�vel num quadro de antagonismo social
dilacerante como esse. Em resumo, o que ele diz � que � imposs�vel
estabelecer uma agenda compartilhada para o futuro num pa�s em que boa
parte da popula��o foi exclu�da do passado e, agora, do presente. Apenas
1% dos estabelecimentos rurais do Brasil det�m 44% das terras
agricult�veis. Mais de 60% do cr�dito rural ficam com 4 mil grandes
propriedades. A agricultura familiar, com 4,1 milh�es de
estabelecimentos, obt�m apenas 25% do financiamento total, embora
empregue 77% dos 17,3 milh�es de brasileiros ocupados no campo. Desses,
por�m, 5,5 milh�es vivem em estabelecimento com receita monet�ria anual
de 98 reais. S�o totalmente descapitalizados. Produzem para subsist�ncia
e dependem de fontes externas � atividade para sobreviver. No processo
de estabiliza��o da moeda, nos anos 90, 400 mil produtores perderam
suas terras, refor�ando uma di�spora de 28,5 milh�es de pessoas expulsas
do campo entre 1960 e 1980. Algo como uma Argentina inteira deixou de
ser rural para ser periferia urbana em menos de uma gera��o.
N�o se trata portanto de idealizar um tempo de remota harmonia campestre
que nunca existiu. Para sobreviver no s�culo 21, a agricultura familiar
ter� que se reinventar, romper o torniquete fundi�rio e social;
diversificar as alternativas de renda e de emprego e diferenciar-se da
grande produ��o para conquistar o promissor mercado dos alimentos
"verdes". Diluir o desafio em nostalgias que reduzem o campo a
um
parque tem�tico para a contempla��o conservadora -ou a um asilo cativo
da cesta b�sica oficial - apenas refor�a a condena��o desses
sentenciados ao passado. H� perguntas por�m que n�o se consegue
silenciar. E se houver neles a semente de um futuro de repactua��o entre
o global e o local? Entre homem e natureza? Entre identidade e
diversidade? E se eles tiverem algo mais a dizer do que simplesmente
adeus?
Dois roteiros, que incluem as cooperativas de cr�dito do oeste do Paran�
-uma aposta no cr�dito solid�rio como estaca de resist�ncia e col�nias
imigrantes das Encostas da Serra Geral, em Santa Catarina, ressuscitadas
pelo sopro do agroturismo, v�o nos conduzir por essa viagem de
contrastes flagrantes e interroga��es que ardem. � principalmente uma
viagem de embaralhamento de tempos. Nela o antigo e o novo se mesclam em
sutis possibilidades de reinven��o das formas de viver e de produzir.
Mas n�o h� certezas. Exceto a de que o futuro ficar� mais opaco se os
retratos dessas sobreviv�ncias tiverem o destino comum de um �lbum de
recorda��es.
O banco da solidariedade
Existe um Brasil que mal v� a cor do dinheiro porque de fato ele n�o
circula muito por l�. Mais de 40% dos munic�pios brasileiros n�o t�m
sequer ag�ncia banc�ria. E isso diz mais sobre a renda per capita de
seus cidad�os do que o anu�rio estat�stico do IBGE. S�o n�cleos
pequenos, acanhados, quase an�nimos. O Brasil passa por eles na TV, mas
n�o os v�. A relev�ncia desses �rf�os da p�tria est� na sua uni�o:
juntos, integram uma rede que abrange 80% dos n�cleos urbanos do pa�s,
com popula��es sempre inferiores a 50 mil habitantes cada um; a grande
maioria fica abaixo de 10 mil. Entre a �rea rural e a urbana, vive a�
1/3 do Brasil, fatia demogr�fica equivalente � dos conglomerados
metropolitanos. Um projeto pioneiro de cooperativas de cr�dito,
organizado em n�cleos de pequenos agricultores, est� tentando irrigar
essa aridez de recursos e de cidadania de forma diferente. Sua meta � o
desenvolvimento local; a alavanca, a agricultura familiar; e a moeda, o
dinheirosolid�rio.
M�s de mar�o marca a temporada das assembl�ias de balan�o nas 30
cooperativas de cr�dito espalhadas entre Paran�, Santa Catarina e Rio
Grande do Sul. Atrav�s delas, 11 mil fam�lias rurais e 120 munic�pios da
rede nanica podem respirar um pouquinho melhor. O Sistema de
Cooperativas de Cr�dito Rural com Intera��o Solid�ria, ou simplesmente
Cresol, come�ou a ser formado em 1995. Tem sua origem nos Fundos
Rotativos, que surgiram em 1988, no Paran�, com dinheiro de ONGs
europ�ias. Ganhou m�sculos com a intensifica��o do Movimento dos
Sem-Terra, nos anos 90, e assumiu sua fei��o definitiva, em 1995, ap�s
o Grito da Terra, que pressionou o governo a criar o Pronaf. Hoje, a
rede Cresol � cortejada por ministros e governadores. A diretoria social
do BNDES v� nela um interlocutor para ampliar sua atua��o med�ocre junto
� agricultura familiar. A hist�ria toda come�ou com um capital de 460
mil reais. Agora s�o 20 milh�es de reais - 6,5 milh�es de capital social
dos pequenos agricultores, que pagam uma cota m�nima de ingresso
equivalente a dez sacos de milho. O restante dos recursos vem do Pronaf.
Repasses de cr�dito de custeio e investimento operados aqui com uma
caracter�stica in�dita no mercado: a seletividade social, que faz o
dinheiro chegar a quem mais precisa.
Tecnicamente, � como se fosse um microbanco rural. O pulo-do-gato est�
no controle, exercido por um sistema de auto-regula��o comunit�ria,
baseado numa clientela de vizinhan�as. A maior cooperativa da rede, a de
Laranjeiras, PR, tem 1.000 associados. Mas � grande demais para o gosto
dos dirigentes, que recomendam m�dulos regionais com 400 a 600 pessoas
no m�ximo. As decis�es de empr�stimo e o retorno do dinheiro dependem
muito dessas estruturas compactas, que formam um verdadeiro filtro de
gerentes p�s descal�os. Todos se conhecem, muitos opinam. Direta ou
indiretamente, a comunidade avaliza o cr�dito liberado, que n�o pode
exceder a 15 vezes a cota do associado. Resultado: o �ndice de calote �
m�nimo, em torno de 1%. A inadimpl�ncia baixa derruba o custo do
dinheiro e diminui a taxa de risco, spread dos financiamentos. O
subs�dio embutido nos repasses do Pronaf tamb�m ajuda. Tudo junto,
permite � Cresol operar com as menores taxas do mercado: 0,75% ao m�s.
A combina��o de microcr�dito, algum subs�dio, solidariedade e democracia
participativa formam uma lente poderosa. � capaz de revelar fam�lias e
projetos vi�veis onde o sistema financeiro convencional s� enxerga
riscos e escurid�o
A pequena Pranchita que o diga. Grudada no costado friorento da
Argentina, no extremo oeste paranaense, seus 10 mil habitantes vivem da
terra - 80% moram na �rea rural e 240 fam�lias j� se associaram �
cooperativa. Chic�o Quevedo, presidente regional da Cresol, nunca teve
conta em banco. N�o � o �nico: 30% dos 11 mil cooperados do sistema
nasceram, cresceram, tiveram filhos, alguns at� netos, sem carimbar uma
�nica folha de cheque. Mas hoje boa parte do dinheiro que circula no
com�rcio local e a quase totalidade dos cheques emitidos na pra�a t�m a
ver com a cooperativa do Chic�o. A Cresol � o �nico banco da cidade.
Recebe contas, fornece talon�rio, faz papagaios, repassa cr�dito de
custeio e investimento. At� capta um dinheirinho, a t�tulo de poupan�a
cabocla. Com uma vantagem: na min�scula Pranchita, ela remunera melhor
os aplicadores do que os elefantes financeiros do pa�s - paga 3% ao
ano. Numa manh� friorenta de mar�o, 110 agricultores chegam ao sal�o
paroquial da matriz para discutir o balan�o desse neg�cio atrevido que
eles comandam. � uma conversa sobre n�meros, mas sobre a vida tamb�m;
logo, sobre o futuro.
Os indicadores s�o todos favor�veis. Mas o presidente nacional da
Cresol, Assis Miguel do Couto, que nasceu nessa fronteira - "de pai
caboclo e m�e polonesa" -, sabe que o instant�neo cont�bil n�o
merece
festejo. Aos 39 anos, Assis j� tentou ser grande no Mato Grosso, nos
anos 70. Aprendeu na pr�tica que n�o h� mais sa�da individual para a
agricultura familiar. Ele escavoca a superf�cie dos n�meros para
advertir: "Existe um processo silencioso de empobrecimento no campo, um
mata-mata onde quem agoniza � o pequeno agricultor". O mata-mata � uma
praga conhecida. Os homens aqui reunidos sabem que o sujeito que toma um
cr�dito novo para pagar o velho n�o quebra, mas n�o investe. Vai comendo
o patrim�nio pelas beiras: uma vaquinha, o cavalo... A gera��o seguinte
recebe a propriedade, quando recebe, como se fosse a raspa do tacho. No
audit�rio, muita gente remexe nas cadeiras quando os agr�nomos exp�em
essa trajet�ria conhecida. Assis fala manso, pausado.
N�o � de discursos, mas reserva uma paulada embutida em cada frase: "A
agricultura familiar n�o tem sa�da no ambiente restrito da pequena
propriedade.Ela n�o � uma categoria econ�mica, mas um conceito de
desenvolvimento. Por isso, precisa de pol�ticas p�blicas. O cr�dito
cooperativo � apenas um dos pilares desse modelo. Mas � vital mudar o
jeito de produzir tamb�m. N�s estamos dizendo isso claramente aos
cooperados: resgatem o manejo org�nico e agreguem valor � produ��o, se
quiserem resistir". Ao meio-dia, quando ningu�m ag�enta mais essa
mistura de contrariedade com barriga vazia, a tr�gua chega dentro de um
enorme tacho com 50 quilos de arroz tropeiro - fumegante.
A 500 quil�metros dali, em Pinh�o, a conversa � a mesma, num cen�rio
muito parecido: 145 agricultores cooperados ocupam o sal�o de festas da
igreja matriz. A Cresol tem 404 s�cios aqui e um capital social de 70
mil reais. O valor m�dio dos empr�stimos em 1999 foi de 1.100 reais.
Mas, pelas contas do presidente Nilceu Evanir Kempf, o improv�vel
Zequinha, deu um vermelho de 2.500 reais no balan�o. Todavia, ningu�m
ter� que colocar a m�o no bolso: o fundo de reserva cobre seis vezes
essa diferen�a. "N�o � esse o problema", diz Zequinha, sempre
agitado.
Problema de verdade para ele s�o os custos insuport�veis do manejo
convencional. "E a escassez de terra que pune por ntecipa��o os filhos
dos agricultores", diz.
CONTATOS Especial - Agricultura familiar
Cepagro - Centro de Estudos e Promo��o da Agricultura de Grupo, rod.
Admar Gonzaga, Km 03, Itacorobi, Caixa Postal 6073, CEP 88036-971,
Florian�polis, SC, tel. (0XX48) 334-3176. E-mails:
Cresol - Cooperativa de Cr�dito Rural com Intera��o Solid�ria, rua Rui
Barbosa, 513, Centro, CEP 85730-000, Pranchita, PR, tel. (0XX46)
.