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Os transgênicos e os universos incomunicáveis


Marcelo Leite, colunista da Folha

Há uma chance razoável de que a nova Lei de Biossegurança seja votada neste mês pelo Senado, aproximando a querela dos transgênicos alguns centímetros mais daquilo que alguns pensarão ser sua resolução. Que não se iludam. Após seis anos de idas e vindas entre Judiciário, Executivo e Legislativo, nunca o público brasileiro esteve mais distante de algo que mereça esse nome e venha coroar um processo racional e democrático de discussão do problema. De resto, quem se importa?

Ninguém agüenta mais esse debate, que aliás não houve. Ele prossegue na estaca zero em que estava no segundo semestre de 1998, quando a soja transgênica Roundup Ready (geneticamente "engenheirada" para resistir ao herbicida Roundup, ou glifosato) teve sua liberação pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) questionada na Justiça. A questão era e continua sendo se essa comissão deve ou não ser investida do poder de dispensar a realização de estudos de impacto ambiental. O impasse corre o risco de mais uma vez ser desatado pelo governo a golpes de medida provisória.

Qualquer que seja a decisão no Senado, que pode ou não exigir nova rodada na Câmara dos Deputados, a cisão profunda em torno dessa questão conduzirá à derrota amarga de um dos campos, pró- ou contra-CTNBio. Não há (mais) meio termo possível. Os vencidos prosseguirão no emprego de todos os meios de que dispuserem para sabotar os efeitos práticos da decisão legislativa. O problema diz respeito a todos, mas permanece seqüestrado por duas tribos fundamentalistas, cujo fracasso em se comunicar tem repercussões muito além de seus horizontes estreitos.

Dois eventos, nos últimos dez dias, ilustram bem essa incomunicabilidade.

No Rio, as organizações não-governamentais Ser Mulher e Criola realizaram o simpósio Sob o Signo das Bios, com apoio da Fundação Heinrich Böll (ligada ao partido Verde da Alemanha). Foram dois dias de reflexões críticas sobre biotecnologias, das células-tronco aos transgênicos, no tradicional Hotel Glória. A platéia e as mesas eram integradas sobretudo por convertidos, por assim dizer, pessoas que mantêm distância prudente do entusiasmo irrefletido com as maravilhas da tecnociência -sempre recomendável, ao menos entre intelectuais.

Não há, decerto, nada de errado em organizar simpósios assim, para troca e reforço mútuo de idéias e opiniões. Quem participa sempre aproveita muito. O problema estava fora do evento, no padrão de repetição de debates em que os dois lados verdadeiramente adversários nunca se reúnem em torno da mesma mesa.

O mesmo ocorreu, ou melhor, deixou de ocorrer, em Florianópolis, que recebeu no hotel de lazer Costão do Santinho o 50º Congresso Brasileiro de Genética. Não podiam faltar discussões sobre transgênicos, claro, mas estavam ausentes delas os que mais problemas vêem na tecnologia de modificação genética de plantas e animais -ou melhor, nas suas inextricáveis implicações socioeconômicas. Foram debates de alto nível, como no Rio, mas de reduzida eficácia pública.

Como convidado para as duas reuniões, não fica bem fazer-lhes reparos. De fato, não se trata disso. Elas comparecem aqui apenas como exemplos, por assim dizer sintomas, de uma moléstia que é social e muito brasileira: a incapacidade de levar a termo um debate verdadeiramente político e democrático sobre novas tecnologias.

fonte: Folha de São Paulo , domingo, 12 de setembro de 2004 - Caderno Mais! Ciência em Dia

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