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Os Agrotóxicos e a Poluição das pAguas: Coando e Engolindo Mosquito



ARTIGO

OS AGROTÓXICOS E A POLUIÇÃO DAS ÁGUAS:COANDO MOSQUITO E ENGOLINDO CAMELO

por Jelson Oliveira, Poeta, secretário executivo da CPT-PR, é autor de Calendário das Águas (SP: Musa Editora, 2003).

A água é uma necessidade e um direito de todos os seres vivos. Até onde temos conhecimento, toda forma de vida depende da água. Um ser humano é feito 70% de água e depende de água para viver: uma pessoa pode ficar, no máximo, uma semana sem água. Depois desse tempo o organismo começa a entrar em colapso. E porque a água é tão necessária para a manutenção da vida, muita gente começa a transforma-la num grande negócio. Baseadas num discurso de “escassez da água” e da primazia de seu valor econômico, empresas como a Coca-Cola, a Nestlé e a Danone estão ganhando “rios de dinheiro” (usando a expressão ao pé da letra) com este grande negócio da água. Em muitas cidades do Paraná, a começar pela capital, Curitiba, se pode comprar água dessas empresas: Purelife, Vittaleve e Aquária são algumas marcas que chegam a custar em muitos lugares até R$ 3,00 a garrafa de 500 ml. Significa que o litro de água está valendo muito mais do que gasolina, o grande combustível do sistema capitalista. É o que se chama de “petrolização da água”, ou seja, a agregação de valor de mercado a “um bem de destinação universal”, como nos diz o texto da Campanha da Fraternidade 2004 promovida pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).

 

Ora, o mesmo sistema internacional que se torna a água um bem de mercado, falando da água como o “ouro azul” do novo milênio, são os que espalham a poluição e a destruição dos rios, nascentes e águas subterrâneas do mundo. O discurso da chamada “oligarquia da água” (essas grandes empresas que lucram com este bem universal) está baseado no seguinte argumento: se a água é tão necessária à vida e se ela está sendo poluída e desperdiçada pela população mundial, então a saída seria colocar um preço na água, ou seja, torná-la um bem de mercado. Os defensores deste enredo hipócrita acreditam, como é seu costume, que o mercado pode regular o uso da água: se as pessoas tiverem que pagar caro pela água, vão pensar duas vezes antes de deixar uma torneira pingando ou jogarem lixo nos rios. Ao invés de conscientizar a população sobre a importância da água essas empresas querem punir os responsáveis pelo desperdício e pela poluição e, por tabela, lucrar com a venda da água, que, segundo um estrategista da Monsanto declarou recentemente, “a água é a última fronteira de investimento para o setor privado”.

Você poderia se perguntar porque um funcionário da Monsanto está interessado no assunto da água. Ocorre que esta empresa conhecida dos agricultores/as em todo o mundo é um dos nomes mais fortes da oligarquia internacional e pretende dominar todo o mercado de água na produção de alimentos. O nome da Monsanto, assim, aparece ao lado das grandes empresas que estão em processo acelerado de domínio da água em nível mundial: no mercado da água mineral as três gigantes Coca-Cola, Nestlé e Danone; no abastecimento urbano as francesas Vivendi (que havia comprado parte da Sanepar durante o governo Lerner), a Suez e a alemã RWE[1]; na produção de energia a partir das hidrelétricas, a Tractebel (subsidiária belga do conglomerado empresarial francês da Suez S/A, já é proprietária de 2 hidrelétricas no Rio Iguaçu: Salto Segredo e Salto Santigado)[2]. Estima-se que a Tractebel obtenha um lucro de 800 mil reais por dia com a Usina de Salto Santiago e gaste menos de cinco reais para gerar 1 megawatts da energia, que é vendida a quatrocentos reais o megawatt. Isso explica porque o preço da energia elétrica aumentou mais de 400% depois da privatização do setor, durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Trata-se de um “roubo legalizado”.

O cálculo é simples: o modelo de agricultura promovido pela Monsanto é o modelo da monocultura extensiva, baseada no uso indiscriminado de agrotóxicos e em grandes expansões de terra para o plantio. Assim, para difundir suas sementes geneticamente modificadas, a Monsanto precisa de muita água, já que essas grandes lavouras estão em terrenos como o cerrado (área onde hoje temos a maior expansão do agronegócio brasileiro), “o oeste baiano, o sul do Piauí, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Tocantins, principalmente as bacias do Rio São Francisco, Araguaia e Tocantins, mas já com expansão pela região amazônica”[3]. Em todas estas regiões o agronegócio depende basicamente da irrigação.

Este modelo de agricultura disseminado mundo afora pela Monsanto é o grande vilão do desperdício e da poluição da água em patamares impressionantes. Em relação ao desperdício a produção agrícola irrigada consome, em nível mundial, uma média de 72% da água doce do planeta, sendo que no Brasil esse número seria de 63%. A indústria responde por outros 20% do uso mundial da água doce e o consumo humano seria responsável pela utilização de 10% da água. Por isso denunciamos o discurso corrente que culpa a população (geralmente os pobres, os trabalhadores) pelo desperdício da água. Em qualquer esquina do mundo hoje, vemos as empresas de abastecimento, a imprensa, o governo, empresas e até muitas ONG’s tentando convencer a população a fechar a racionalizar o uso da água, afim de evitar o desperdício. Mas muito desta gente não está disposta a questionar o modelo de agricultura e as políticas de apoio ao agronegócio. Eles acabam optando pelo discurso mais fácil achando que estão prestando um grande serviço para a humanidade. Estamos de acordo com seus argumentos, mas que eles sirvam para todos e não só para o povo.

Além do desperdício da água, a agricultura extensiva também é a grande vilã da poluição das águas com metais pesados derivados do uso de agrotóxicos. O Brasil é um dos maiores consumidores mundiais de agrotóxicos, representando 8 a 10% do consumo mundial (dado que vem aumentando anualmente desde 1995), representando uma movimentação financeira de 1,6 bilhão de dólares só no ano de 1995. O Paraná é um dos estados que mais sofre com esta realidade, já que sua agricultura está baseada na grande produção de grãos para exportação, num modelo totalmente dependente das empresas transnacionais de agroquímicos. A agricultura paranaense está baseada na concentração da terra, na destruição das florestas e das matas ciliares[4] (num processo que iniciou na década de 50, pelas mãos do governo Lupion e continua até hoje) e na descarga de produtos químicos que poluem as águas e destroem o meio ambiente, gerando morte de centenas de pessoas. Em 2003 o setor de agroquímicos do Brasil aumentou seu faturamento entre 15 e 20%, movimentando mais de 2,4 bilhões de dólares. No Paraná as empresas aumentaram em mais de 10% as vendas no ano passado, motivadas pela expansão da monocultura da cana e da soja, principalmente: segundo reportagem publicada no Jornal Folha de Londrina, no dia 25.11.03, o faturamento com agroquímicos no Brasil chegou a U$ 2,4 bilhões de dólares no ano passado, contra U$ 2 bilhões faturados em 2002. Segundo a mesma reportagem, a multinacional Milenia Agro Ciência, com sede em Londrina, deve ter abocanhado U$ 220 milhões desse montante, só no ano passado, aumentando em cerca de 10% os seus lucros.

O uso de defensivos agrícolas está intimamente ligado à poluição das águas e à deteriorização do solo: as práticas agrícolas inadequadas levam à perda da camada fértil do solo, que depois é corrigido com componentes químicos. Esse processo é intenso no Brasil, principalmente nas regiões de grande monocultura, como o Rio Grande do Sul, Paraná, Mato Grosso, São Paulo, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina, principalmente nos cultivos de soja, milho e cana de açúcar. Assim, sem a proteção das florestas e sem as matas ciliares, a terra vai morrendo aos poucos. Depois da aplicação dos agrotóxicos, a primeira chuva leva a descarga química para os rios, poluindo as águas.

Segundo dados oficiais, em 100 anos o Paraná derrubou 80% de sua cobertura vegetal, trazendo enormes prejuízos para o meio ambiente, o que vem se agravando pela enorme poluição das águas. Da enorme riqueza de floresta de araucária, resta apenas 1%. A área total de floresta natural no Estado é aproximadamente de 17.800 km2, e 44,4% dela pertence à Bacia do Iguaçu. A retirada da cobertura vegetal de uma localidade aquece e torna pobre o solo, aumenta a poluição e o assoreamento dos rios, reduz a biodiversidade, altera a velocidade dos ventos, aumenta a temperatura do ar e modifica, irreversivelmente, o microclima local. Sem árvores, as aves partem. Sem essas predadoras naturais, as pragas aumentam. O crescimento das pragas traz o agrotóxico. O solo pobre também traz a necessidade do fertilizante. E, com eles, a química dos laboratórios chega ao campo e através dele, à nossa mesa.

Além da morte da natureza, os agrotóxicos trazem a morte das pessoas: segundo a FIOCRUZ/SINITOX, registrou-se no Paraná desde 1993 aproximadamente 6 mil casos de intoxicação de pessoas por praguicidades (agrotóxicos, inseticidas, raticidas, etc). Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), para cada caso registrado ter-se-ia outros 50 não notificados. Dados da SESA (Secretaria Estadual de Saúde) do Paraná mostram que nos últimos 3 anos 222 pessoas morreram vítimas do uso de agrotóxicos no Estado (nos últimos 10 anos esse número ultrapassou a casa de 900 registros de óbitos e mais de 10 mil casos de intoxicação). O município de Umuarama está no topo do ranking das cidades que mais registram óbitos por intoxicação com agrotóxicos, seguida por Campo Mourão, Ivaiporã, Francisco Beltrão, Guarapuava e Telêmaco Borba, justamente regiões marcadas pela agricultura de extensão. Por outro lado, Cornélio Procópio é a cidade recordista em casos de intoxicação por agrotóxicos no Paraná. Além disso, o Paraná é recordista brasileiro em número de pessoas com câncer. Não é difícil imaginar que este é o preço pelo uso contínuo e indiscriminado de venenos nas nossas lavouras, poluindo a água e os alimentos que ingerimos.

As águas do Paraná apresentam grandes quantidades de resíduos de agrotóxicos: uma pesquisa da SUREHMA, de 1984, verificou que cerca de 70% das amostras de água tratada apresentavam resíduos de agrotóxicos. Segundo a pesquisa, da água coletada “in natura” em 9 bacias hidrográficas do Paraná, 91,4% delas exibiram resíduos de venenos. Toda esta contaminação é resultado tanto da aplicação direta sobre a água, quanto de partículas trazidas pelas enxurradas. Uma análise feita recentemente em peixes mortos coletados no Rio Pirapó, responsável pelo abastecimento de 80% da população de Maringá (240 mil pessoas), é um exemplo da situação das nossas águas. O teste, realizado pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente, apontou altíssimos índices de metais pesados no organismo dos peixes, principalmente cromo e chumbo. “O cromo encontrado nas vísceras dos cascudos, por exemplo, é 830 vezes superior à quantidade tolerada pela legislação sanitária brasileira, que é de 0,10 miligramas por quilo. Já a quantidade de chumbo detectada foi quase 29 vezes mais alta que os parâmetros legais tolerados”. Segundo a Secretaria, “estudos científicos relacionam os riscos causados à saúde humana por metais pesados como chumbo, cromo, cobre, zinco, cádmio e mercúrio. Ao contaminar o ambiente, estes metais atingem as cadeias alimentares (água, peixes, vegetais) e chegam ao homem. No organismo humano, podem causar problemas neurológicos, hepáticos, doenças como câncer, malformações congênitas e outras anomalias reprodutivas”. É amplamente sabido que o efeito desses elementos químicos metálicos, em concentrações elevadas é muito grave para a saúde humana e dos demais seres vivos. Os metais pesados são despejados nos rios pela indústria e pela agricultura.

Em regiões como União da Vitória e São Mateus do Sul, às margens do Iguaçu, são absurdos os índices de arsênio, chumbo e mercúrio, resultado principalmente do sistema de resfriamento do xisto feito pela Petrobrás na região e também das plantações de batata e outras culturas dependentes de agrotóxicos nesses municípios.

Outro exemplo grave dos prejuízos que o uso de agrotóxicos na agricultura traz ao Paraná é o caso das lavouras de cana-de-açúcar, que usam o herbicida 2.4-D e seus similares, com o fim de inibir a fotossíntese das culturas de folhas largas e que acaba atingindo as águas (com grande matança de peixes) e culturas como a uva, o café, verduras e árvores frutíferas em geral. O herbicida 2.4-D é um dos produtos mais usados na agricultura há mais de 50 anos e deve ser aplicado dentro de estritas normas técnicas de pulverização. Derivado da tecnologia de guerra como os outros agrotóxicos, o 2.4-D traz em sua base o agente laranja, usado pelos Estados Unidos na Guerra do Vietnã que terminou em 1975. Cientistas avaliam que quase 8 milhões de litros do agente laranja foram jogados sobre o país, submetendo mais de 1 milhão de seus habitantes aos efeitos do desfolhante, provocando várias doenças na população, inclusive câncer. A substância química foi usada para tirar dos combatentes comunistas as suas fontes de alimento e matar a vegetação que os escondia.

Além de solucionar o problema da fiscalização do uso destes venenos nas lavouras do Paraná (muitas vezes aplicado com aeronaves que pulverizam as lavouras, as águas e até cidades inteiras do interior do Estado), devemos nos empenhar para a aprovação de leis que proíbam o seu uso. É preciso definir as competências e atribuições concretas dos órgãos públicos responsáveis e mobilizar toda a sociedade para que se empenhe em ações educativas de conscientização vigilância e denúncia em torno da problemática abordada.

O mais grave desta situação é que não temos ainda confiança na água que sai pela torneira dos paranaenses: segundo os pesquisadores, a Sanepar não realiza análises de resíduos de agrotóxicos nas águas do Estado: dos 25 tipos venenos mais usados nas lavouras do Paraná apenas 1 seria analisado pela empresa de saneamento, o 24D. Entretanto, o 24D é o 21º na lista dos agrotóxicos mais usados no Paraná: ou seja, existem outros 20 que não são analisados, entre eles o Furadan, o Roundup e inúmeros herbicidas e inseticidas. É preciso que sejam feitas no mínimo 4 análises durante o período de aplicação desses venenos nas lavouras. A Sanepar alega não ter capacidade técnica e financeira para realizar a verificação, já que existiriam 300 tipos de agrotóxicos usados no Paraná. Enquanto nos preocupamos com a presença de coliformes fecais e demais matérias vivas ou com a cor adulterada de nossas águas, estamos ingerindo produtos químicos perigosos à saúde humana. Enfim, estamos coando mosquito enquanto engolimos camelos.

Que a agroecologia é bom para o agricultor porque rompe com a dependência, todos nós sabemos. Que a agroecologia é bom para a natureza e os demais seres vivos, também sabemos. Agora chegou a hora de compreender que a preservação da água também depende da agroecologia. Que nossa Jornada seja um espaço de reafirmação destes princípios, que reconhecem a água como um patrimônio da humanidade, herança deixada por Deus e pelos nossos antepassados e que devemos cuidar para deixar às gerações futuras. A água limpa que abençoa a terra e faz germinar a semente é a mesma que nos anima nesta grande luta por uma terra livre de transgênicos, com água limpa e livre dos agrotóxicos.

Jelson Oliveira

Poeta, secretário executivo da CPT-PR, é autor de Calendário das Águas (SP: Musa Editora, 2003).

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[1] Segundo o Relatório das Organizações Mundiais que defendem a Água como Bem Comum, Vivendi e Suez são as duas maiores corporações de recursos hídricos do mundo e “capturam aproximadamente 40% do mercado de água existente, fornecendo serviços de recursos hídricos para mais de 110 milhões de pessoas cada. A Suez opera em 130 países e a Vivendi em mais de 100; seus faturamentos anuais ficam acima de U$ 70 bilhões. A alemã RWE segue as duas primeiras, com a aquisição da gigante britânica Thames Water e completando com a compra da American Water Works, a maior empresa privada de recursos hídricos dos Estados Unidos”.

[2] “A Tractebel está construindo a barragem de Cana Brava, no rio Tocantins, com US$ 160 milhões em financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). A Tractebel se recusou a reunir com o MAB para discutir a situação de centenas de famílias atingidas, excluídas arbitrariamente de programas de compensação. Controla também as barragens de Itá e Machadinho (rio Uruguai) e tenta adquirir a concessão para construir mais barragens no Tocantins).” Roberto Malevezzi, Os Donos dos Nossos rios.

[3] Texto Base da CF 2004, p. 21.

[4] Os números mundiais indicam que cerca de 1,2 bilhões de hectares de área com vegetação, uma superfície tão grande quanto a Índia e a China juntas, foi significativamente degradada desde a segunda guerra mundial (WRI, 1992).


Data: 18/5/2005

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