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União de mulheres cafeicultoras transforma as relações de gênero em MG

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Maria José acorda todo dia às 5h para cuidar da roça. Regina administra a própria lavoura de café orgânico, enquanto ajuda o marido em outra plantação. Rosângela equilibra os trabalhos dentro de casa com a colheita e os estudos. As histórias dessas três moradoras da zona rural de Poço Fundo, no sul de Minas Gerais, cruzaram-se graças ao café. E é por meio dele que elas estão ajudando a transformar a vida de dezenas de outras mulheres na região.

18.03.2019 08:00 por Afonso Ribeiro 0
Grupo MOBI nasceu em 2006 dentro de uma cooperativa de agricultores familiares da cidade de Poço Fundo

Todas fazem parte do MOBI, iniciativa criada em 2006 dentro de uma cooperativa de agricultores familiares da cidade, a Coopfam. Como na época nenhuma mulher tinha direito ao voto nas assembleias da associação, já que a tomada de decisão sobre a venda do café era concentrada na mão dos maridos, elas se reuniam separadamente para conversar sobre os temas debatidos pelos homens nos encontros da cooperativa.

No início, elas contam que ainda faltava uma identidade que unisse o grupo. Eram poucas as que compareciam nos encontros e se engajavam nas atividades. Mas isso não fez as cinco fundadoras desistirem. Três anos depois da criação do MOBI, Maria José Borges foi a primeira mulher a votar na Coopfam. Conseguiu o direito, no entanto, contra sua vontade. É que após a morte de seu marido, ela precisou tomar as rédeas da propriedade. Mãe de duas filhas, ela conta que, na época, pensou em desistir. "Na primeira assembleia onde pude votar, entrei em uma fila enorme, só de homens. Eu era a única. Pensei em chorar, mas quando olhei para o lado, elas estavam vindo em minha direção para me dar apoio. Eu nunca vou esquecer disso", conta a produtora familiar.

A participação de Maria José na assembleia inspirou mais mulheres a buscarem independência financeira. Após receberem visita de uma norte-americana, que se mostrou interessada em comprar o café produzido e administrado por elas, criaram a própria marca: o café feminino, onde são responsáveis pela maior parte dos processos, do cultivo até a venda. Hoje, o MOBI produz 30 toneladas de café feminino por ano. Desse total, 80% é exportado para os Estados Unidos. O restante é vendido no Brasil. Além de gerenciar o comércio do grão, as 30 participantes organizam cursos profissionalizantes e viagens culturais, de acordo com os interesses em comum.

"Às vezes, quando nós íamos para a cidade e meu marido precisava ir até a cooperativa, eu ficava dentro do carro esperando, nem descia. Agora é meu marido que fica me esperando", conta Regina, que conseguiu quebrar a própria resistência inicial e se tornou coordenadora do MOBI. Para ela, além da amizade entre as integrantes, a maior conquista em se aliar ao grupo foi a independência financeira. "Buscar independência não prejudica a relação com o marido. Pelo contrário, melhora muito a convivência dentro de casa. Quando eu saio e chego feliz, ele fica feliz também".

Visibilidade

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Divulgação/MOBI
Dados do último censo rural apontam que, no Brasil, existem hoje 2,8 milhões de mulheres vivendo no campo. Elas correspondem a 19% do total de produtores na liderança nos estabelecimentos rurais, número bem maior do que o registrado na última década.

Por outro lado, a Organização das Nações Unidas afirma que a desigualdade de gênero e a discriminação contra as mulheres é, em 2019, uma das causas estruturais da pobreza rural e um dos maiores desafios para os países da América Latina e do Caribe.

Servidora do Instituto Federal do Sul de Minas, Aloísia Hirata acompanha o grupo desde 2014. Para ela, o MOBI é referência de visibilidade do trabalho da mulher rural. "Sempre tivemos mulheres no campo desenvolvendo iniciativas, mas é sempre o homem que aparece em público. As razões disso passam pela questão da estrutura familiar, concentrada na figura do pai. Muitas vezes, a mulher rural não pode ter visibilidade e protagonismo em suas ações para que o marido não se sinta desvalorizado".

Por isso, o MOBI ainda sofre resistência. Entre as mais de 400 mulheres que fazem parte da Coopfam hoje, entre cooperadas, filhas e mulheres dos agricultores, existe uma parcela que não enxerga o real sentido da iniciativa, enquanto outra não vai às reuniões por falta de apoio do marido. Para tentar quebrar essa barreira, o MOBI agora está expandindo a produção de café além do orgânico - elas acreditam que a possibilidade de complemento na renda familiar faça com que mais mulheres se interessem em fazer parte do grupo. Com o objetivo de proteger o selo de café feminino, uma certificação inédita está sendo desenvolvida, inspirada no modelo participativo orgânico.

"A questão econômica é um chamariz porque, em um primeiro momento, as mulheres podem não ter a consciência da situação de desigualdade em que se encontram", ressalta Aloísia. Rosângela, uma das fundadoras, complementa: "Não é fácil adquirir essa consciência individualmente. Mas no coletivo, é mais possível. E quando elas estão inseridas no grupo, conseguem entender o que, de fato, é ser mulher no ambiente rural. A partir daí, têm mais força para lutar pelos seus direitos"


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