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O colapso anunciado de um projeto de desenvolvimento sustentável

A gestão fundiária e ambiental do governo Temer provoca a desestabilização pelos ruralistas de áreas de uma reserva legal no Pará

 

Mais uma vez o legado do incansável trabalho da irmã Dorothy Stang na região da Transamazônica está ameaçado. Desta vez, está em jogo a própria existência do Projeto de Desenvolvimento Sustentável Virola-Jatobá, e com ele a integridade de florestas que até ontem se estendiam por mais de 30 mil hectares. Ao lado do PDS Esperança, o Virola-Jatobá foi criado há 15 anos como fruto do trabalho da missionária em busca de uma solução que aliasse conservação ambiental com reforma agrária.

A situação do PDS Virola-Jatobá agravou-se nos últimos meses, devido às crescentes pressões de setores contrários a efetivas políticas fundiárias e ambientais na Amazônia, e em particular, devido à desarticulação da atuação do INCRA no município de Anapu. O órgão é responsável pela gestão do assentamento com características ambientalmente diferenciadas. Há quinze anos, os PDS foram criados como uma proposta que incluía o uso sustentável de uma vasta área de reserva legal sob domínio coletivo de agricultores familiares.

No PDS Virola-Jatobá, formalmente denominado PDS Anapu III e IV, esta reserva florestal coletiva chega a mais de 35 mil hectares. A mesma não pode ser utilizada para cultivos nem pastagens, apenas para o uso sustentável sob manejo dos recursos florestais madeireiros e não madeireiros (frutos nativos da Amazônia, óleos para usos culinário e cosmético extraídos da floresta, plantas medicinais, castanhas, palhas para artesanatos e construção civil e outros). Os assentados têm o direito de cultivar as chamadas “áreas de uso alternativo” do PDS, que correspondem a lotes de cerca 20 hectares para cada uma das 160 famílias.

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Passados quinze anos do início do assentamento, mais de 90% da área do PDS continuava sob cobertura florestal no início de 2016. Na reserva legal do assentamento foi implantada uma iniciativa de manejo em nome da Associação Virola-Jatobá, que representava os assentados, como alternativa para apoiar os meios de vida locais sem que fossem repetidos os altos níveis de desmatamento observados nos projetos de colonização e assentamentos convencionais na região da Transamazônica. Muitas têm sido, contudo, as pressões contra esta iniciativa, e à modalidade de PDS como um todo.

Desde a sua origem, a proposta de PDS contrariou setores do poder local envolvidos na exploração ilegal de madeira e na especulação do mercado de terras, resultando no assassinato de irmã Dorothy em 2005. Ante à reação global, o governo democrático e popular  promoveu um período de aparente resgate de legalidade. Assentadas em terras com maciça cobertura florestal, mas cobiçadas por especuladores e madeireiros por seu potencial valor, as famílias do PDS Virola-Jatobá engajaram-se em iniciativas para manter a área de sua reserva legal relativamente conservada até recentemente.

Um acordo com uma empresa privada para manejo florestal vigorou entre 2008 e 2012. Foi interrompido por normativa do INCRA que passou a vedar a gestão direta de empresas florestais em projetos de assentamento. A partir de 2014 os assentados buscaram apoio para reestabelecer o manejo florestal por meio de suas próprias organizações, numa trajetória marcada pela extrema dificuldade no licenciamento e na condução da exploração florestal, mesmo com apoio de organizações de pesquisa como a Embrapa, Universidade Federal do Pará e Instituto Floresta Tropical.

Nos últimos dois anos, que coincidiram com alterações na gestão fundiária e ambiental conduzidas pelo governo federal, intensifica-se uma orquestração de distintos setores ruralistas atuantes em Anapu visando a desestabilizar de vez a proposta do PDS. Pecuaristas, madeireiros, especuladores imobiliários e políticos querem que essas terras passem pelos mesmos processos que resultaram em degradação e reconcentração fundiária. Desmatamentos são inicialmente feitos por agricultores descapitalizados que, sem apoio governamental, são estimulados a formar pastagens e subsequentemente a repassar seus direitos a outros. Mais de 600 famílias passaram pelos 160 lotes do PDS Virola-Jatobá desde sua instalação. A intensidade desta extrema mobilidade se acentua a partir de 2015.

Tudo isso acontece à vista de órgãos públicos imobilizados. O INCRA encontra-se desprovido de recursos financeiros e humanos adequados, mas sobretudo desprovido de orientação política que, não apenas freie este processo, mas proponha soluções efetivas. O IBAMA, igualmente sem recursos, encontra-se paralisado pela falta de resposta governamental às recentes retaliações de madeireiros contra servidores que ainda defendem a floresta em pé. 

A atual situação do PDS Virola-Jatobá é de completa falta de governança. Passados mais de dois anos sem uma ação efetiva do órgão fundiário em Anapu, o assentamento tem sido gradualmente ocupado por pessoas que foram ilegalmente adquirindo os lotes de uso alternativo, de 20 hectares. Com pretensões de domínio sobre áreas muito maiores, tais atores investem na progressiva derrubada de florestas na reserva legal.

Estes ocupantes não aceitam as normas ambientais do PDS, sendo apoiados e financiados por aqueles que ainda prevalecem incólumes na perversa realidade fundiária na Amazônia: os chamados grileiros, especuladores que lucram com a venda de terras públicas tanto no interior da reserva legal do PDS quanto em terras adjacentes de domínio da União em processo de incorporação ao assentamento. Invasões iniciadas em 2015 resultaram na grilagem de terras em parte da reserva legal e desmatamento detectado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais que já alcança mais de 300 hectares.

Também se beneficiam aqueles que adquirem e processam madeira ilegal, desde toras de espécies valiosas, transportadas na calada da noite para serrarias clandestinas, a estacas para cercar pastagens em fazendas, continuadamente retiradas e vendidas sem nenhum escrúpulo pelos ocupantes irregulares. Este comércio se constitui hoje numa das principais formas de financiamento da derrubada das florestas na região, sendo que a espécie mais utilizada para a confecção de estacas é o acapu (Vouacapoua americana), que tem seu comércio atualmente proibido por normativa ambiental federal.

A desestabilização do PDS Virola-Jatobá teve seu ápice, contudo, neste 15 de novembro, por meio de um movimento que se mostrou bem articulado e focado na transformação da floresta na reserva legal do PDS Virola-Jatobá em terra para quem nela quiser “tirar” um lote, para nele viver ou vender. Nesse movimento aliam-se grupos sociais distintos, financiados pelo setor privado ruralista que pratica a ilegalidade, e articulados por aqueles que foram se estabelecendo irregularmente no PDS, sem que os órgãos fundiários e de fiscalização ambiental os impedissem.

Foram inúmeras as denúncias de delitos e irregularidades apresentadas a estes órgãos, e mesmo ao Ministério Público Federal, desde 2015, pelas famílias do PDS que insistiam, via associação e cooperativa, na busca de seus direitos por viverem na legalidade sem, contudo, serem atendidas.

Neste 15 de novembro, cerca de duas centenas de posseiros invadiram a reserva legal do PDS Virola-Jatobá, demarcando lotes de 500 a mil metros de frente, alcançando entre 100 a 200 hectares. A maior parte destes ocupantes vem da cidade de Anapu, movida por boatos intencionalmente plantados sobre a existência de terras livres no PDS para se “tirar” um lote.

Um movimento frenético de motocicletas passou a ser observado pelas estradas instaladas na reserva legal, estradas estas construídas com apoio do INCRA para o escoamento da safra legal do manejo florestal comunitário, que seria realizado no fiml de novembro e agora está ameaçado. Os invasores trazem motosserras para consolidar nos próximos dias sua ocupação e deixar marcas permanentes no que era a floresta destinada ao Manejo Florestal Comunitário. Em meio ao caos e na eminência do saque da floresta, muitos dos assentados regulares do PDS aderiram a esta ocupação, desesperados por ver seus direitos sobre a reserva legal serem apropriados por recém-chegados, e principalmente, por não mais acreditar na ação do Estado.

As famílias que ainda resistem, mesmo correndo eminente risco, apelam para uma ação conjunta que possa reverter a invasão, manter a floresta em pé, viabilizar a continuidade do Manejo Florestal Comunitário e restaurar a dignidade do emblemático PDS Virola-Jatobá.

Em Anapu, repete-se a perversa estratégia observada em inúmeras situações na Amazônia, nas quais a atuação de grupos contrários a políticas efetivas de reforma agrária e conservação ambiental antagonizam setores do campesinato e de comunidades tradicionais, distorcendo o foco de conflitos sociais. É sobretudo em nome dessas famílias que escrevemos este artigo e lançamos nota, em teor de denúncia aberta e de apelo.

Há muito pouco tempo para evitar danos irreversíveis não só às florestas do Projeto de Desenvolvimento Comunitário, como também ao ideal daqueles que acreditam ser possível manter essas florestas em pé, por meio de iniciativas que gerem renda e alcancem ao menos parte do que, num dia não tão distante, foi sonhado por irmã Dorothy.   

COLABORADORES CIENTES DO CONFLITO E DOCUMENTO, QUE MANIFESTARAM APOIO À DEFESA DO MANEJO FLORESTAL COMUNITÁRIO NO PDS VIROLA JATOBÁ:  

  • Marlon Costa de Menezes, engenheiro florestal, professor da Faculdade de Engenharia Florestal de Altamira, Universidade Federal do Pará.
  • Deivison Venicio Souza, engenheiro florestal, professor da Faculdade de Engenharia Florestal de Altamira, Universidade Federal do Pará.
  • Fábio Miranda Leão, engenheiro florestal, professor da Faculdade de Engenharia Florestal de Altamira, Universidade Federal do Pará.
  • Rafael Costa Miléo, engenheiro florestal responsável técnico do Projeto de Manejo Florestal da Associação Virola Jatobá.
  • Marcelo Galdino de Almeida, engenheiro florestal, Instituto Floresta Tropical - IFT
  • Tatiana Deane de Abreu de Sá, engenheira agrônoma, pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental
  • Milton Kanashiro, engenheiro florestal, pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental
  • Ademir Roberto Ruschel, biólogo, pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental
  • Lucas Mazzei, engenheiro florestal, pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental
  • David Escaquete, engenheiro florestal do IMAFLORA
  • Guilherme B. Stucchi, engenheiro florestal do IMAFLORA
  • Wallisson Maciel, assessor do IMAFLORA
  • Rodrigo Antonio Paza, assessor do IMAFLORA
  • Rafael Brevigliero, engenheiro florestal do IMAFLORA
  • Jéssica dos Santos Pacheco, advogada, colaboradora do Projeto Automanejo
  • Rodrigo Pereira, engenheiro florestal, professor do Instituto Federal do Pará, campus Ananindeua
  • Daniel Palma Perez Braga, engenheiro florestal, doutorando na ESALQ, Universidade de São Paulo

 *Roberto Porro é antropólogo e engenheiro agrônomo, pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental;  Noemi Miyasaka Porro é antropóloga e engenheira agrônoma, pesquisadora do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares, Universidade Federal do Pará

Fonte:Carta Capital por Roberto Porro e Noemi Miyasaka Porro em 21/12/2017

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