Morrendo de sede no escuro

João da Costa(*)

Na esteira da lamentável decisão quanto aos transgênicos, o atual governo através do Vice-Presidente Alencar antecipa para todo o Brasil que o projeto da transposição das águas do S. Francisco estará pronto dentro de um mês.

Os que discordarem já foram contemplados, por antecipação, com o certificado de incapazes. Pois, "será um ato de incompetência do atual governo não fazer esse projeto", são as palavras do Vice-Presidente neste dia cinco de outubro em Natal. Ele, de fato, exibiu os seus conhecimentos científicos e amor pelo Brasil, ao assinar pelo Governo Lula a Medida Provisória conforme as exigências da Monsanto.

É preciso dizer que, detendo assim os nossos patrióticos governantes tanta competência, eles dispensarão os estudos de avaliação ambiental também no caso da transposição do São Francisco. Pois, conforme decisão do Presidente Lula e tornada pública desde agosto, o projeto será feito. O Ministério do Meio Ambiente será mais uma vez posto à margem de qualquer decisão e o programa ambiental do PT também. Assim, as conclusões do relatório de impacto ambiental efetuado pelo grupo Jaakko Pöyri-Tahal irão pro lixo. O trabalho constata que, dos 49 fatores de risco analisados, existem nada menos de 38 deles na transposição.

O projeto, sonho das empreiteiras, está orçado preliminarmente em US$ 6.5 bilhões, incluindo os chamados serviços de revitalização do rio. Decerto que virão os necessários ajustamentos, alguns bilhões por cima, afinal de contas ambição não tem limites. Coragem não faltará para isso também ao atual governo que, estranhavelmente, se decide pelo projeto de transposição apesar dos argumentos contrários dos estudiosos do assunto.

Esses pregam a "tecnologia da aridez", ou seja todo um conjunto de técnicas agropecuárias e de comportamentos ajustados ao meio físico levando o homem à convivência com as secas. Algo parecido com o que ocorre em países de clima temperado nos quais a neve tudo recobre durante quatro, cinco meses por ano, sem que isso implique em perdas agrícolas, desastres econômicos e sociais.

Seria o caso de examinar, entre outros, os resultados do trabalho que desenvolve o engenheiro e pecuarista paraibano Manoel Dantas Villar Filho em sua fazenda nos Cariris paraibanos uma das regiões mais secas de todo o Semi-árido. As bases técnicas e filosóficas do que ele vem fazendo estão descritas no documento "O Sertão frugal e verdadeiro - crônica de uma convicção" encontrado na Internet.

Aparentemente o Presidente Lula e seu tão denodado escudeiro, conhecedores do patriotismo e da ciência que se alojam nos escritórios das empreiteiras, não precisaram se orientar pelos estudos, até mesmo oficiais, e que apontam esses caminhos. Como aquele elaborado ainda em 1982 pela Embrapa e Embrater, intitulado "Semi-árido brasileiro-convivência do homem com a seca". E também o outro "Extensão Rural no Semi-árido" (Embrater 01. 84).

Eles saberiam então que 700 bilhões de m3 de água caem anualmente na região Semi-árida - cerca de 644 bilhões de m3 são perdidos pela evapotranspiração, a soma da água que se evapora e daquela transpirada por seres vivos; 20 bilhões de m3 estão armazenados em 70 mil açudes. Mas a quantidade astronômica de 36 bilhões de m3 de água se escoa para os rios e para os mares. Bilhões de metros cúbicos poderiam ser aproveitados desse total. A propósito, como vai o projeto "Um milhão de cisternas" iniciado no governo passado?

Aqui sugere-se que os competentes sábios do Planalto considerem que, para cada milímetro de chuva por metro quadrado de telhado, corresponde aproximadamente 1 litro de água recolhida. Um telhado de 250 m2 coletaria assim 250 litros de água doce, fresca, e uma cisterna de 12 000 litros abastece uma família de 5 pessoas durante 8 meses sem chuvas.

Por isso mesmo, ao invés do carro-pipa que garante votos aos políticos em troca de água suja e poluída, e que a transposição das águas não irá evitar, os estudos sugerem a cisterna, o implúvio, o poço tubular coletivo quando este couber, por exemplo.

Figuram ainda no vasto elenco de técnicas sugeridas e disponíveis a criação de animais de raças zebuínas adaptados ao meio, e de cabras e ovelhas nativas melhoradas ou de climas secos, ao invés de raças européias que não se adaptam ao calor.

Da mesma forma, as chamadas culturas de pingo d'água, ao invés de cultivos que roubam dos nordestinos os escassos recursos hídricos da região. São (apenas alguns) exemplos delas o cajueiro, o sorgo, a mamona, a jojoba, a algaroba e capins resistentes, a palma forrageira que, além de outros alimentos, fornece ao gado 90. 000 litrosde água em cada hectare cultivado. Ou a "figueira-da-índia", variedade daquela palma, e cujos frutos são consumidos no mundo inteiro como artigo de luxo.

Em suma, o "xerofilismo" ao invés da lavoura irrigada, tudo acompanhado de outras práticas adequadas à região como o uso de fontes alternativas de energia, armazenamento na propriedade etc.

A auto-celebrada competência dos sábios do Planalto silencia sobre o desastre das grandes áreas salinizadas e que viraram deserto nos perímetros irrigados do Nordeste. Desprezou ainda detalhados estudos técnicos cujas conclusões não favorecem a transposição das águas. Esqueceu de procurá-los na Companhia de Eletricidade da Bahia-Coelba, Companhia Hidrelétrica do S. Francisco (Chesf), do Banco do Nordeste do Brasil (BNB). Merecem ser analisados ainda que não atendam os interesses das empreiteiras.

Da mesma forma, os estudos sobre o tema produzidos em Pernambuco pelo Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. Alguns deles se constituem uma séria advertência para a pretendida orgia de obras hidráulicas. São canais, túneis, aquedutos, estações de bombeamento, que farão a alegria das empreiteiras. Mesmo que, conforme alguns daqueles estudos, não haja água para, ao mesmo tempo, irrigar, abastecer o Nordeste e gerar energia.

Ou seja, como escreveu o autor de um daqueles trabalhos, o engenheiro agrônomo João Suassuna, haverá o risco de, no Nordeste, se morrer de sede no escuro..

* Engenheiro agrônomo, autor do Dicionário Rural do Brasil.


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